O RS estreia um novo padrão de extremos climáticos?
Se havia dúvidas sobre o poder devastador dos eventos climáticos extremos, as enchentes do Rio Grande do Sul as dissiparam de vez. Por: Vagner Ricardo
Se havia dúvidas sobre o poder devastador dos eventos climáticos extremos, as enchentes do Rio Grande do Sul as dissiparam de vez. É a conta a pagar pelo aquecimento da temperatura global, que já alcançou o teto de alta de 1,5 grau, fixado pelo Acordo de Paris de 2015, décadas antes do previsto (2050), tendendo a permanecer nesse patamar nos próximos anos. Eventos climáticos ainda mais severos pegam a Humanidade despreparada para suportar os danos diversos causados por enchentes, secas, ondas de calor e ciclones nas cidades.
O tempo para se adaptar aos humores do clima é “para ontem”, alerta o climatologista Carlos Nobre, o primeiro brasileiro a fazer parte do grupo Planetary Guardians, que reúne pesquisadores e estudiosos do clima de várias nacionalidades. Para ele, antecipar a meta zero de emissões líquidas dos gases de efeito estufa e aumentar a adaptação de cidades, campo e infraestrutura, tornando-os mais resilientes, agora são medidas emergenciais — até porque, há evidências de que a temperatura poderá aumentar 2 ou 2,5 graus em 2050, em vez do teto de 1,5 grau. Leia a seguir os principais trechos da entrevista exclusiva dada pelo cientistas à Revista de Seguros.
O colapso do Rio Grande do Sul representa um novo padrão dos eventos climáticos extremos ou pode ser visto como um desvio de rota provocado pelo El Niño, o terceiro mais forte da série histórica?
A temperatura global ficou mais quente 1,5 grau entre meados de 2023 e os primeiros meses de 2024 pela primeira vez na História, desde o último período interglacial, há 120 mil e 130 mil anos. Aliás, entre maio de 2023 e abril de 2024, até superou esse teto, alcançando 1,6 grau de aumento. Pode-se até dizer que um pouquinho é consequência do El Niño, que tradicionalmente provoca aumento da temperatura. Mas o fenômeno, isoladamente, jamais teria feito a temperatura subir tanto. Logo, a severidade e a frequência dos extremos climáticos devem-se mais às mudanças climáticas e menos a fenômenos como o El Niño ou La Niña.
A partir do próximo semestre e no primeiro de 2025, a chegada da La Niña fará a temperatura cair um pouco, mas não será nada significativo. Após sua passagem, as temperaturas voltarão a subir, e preocupa a previsão de que o teto de 1,5 grau mais quente retorne e possa ser permanente. Vale lembrar que o aquecimento global torna mais intensos os fenômenos atmosféricos ou oceânicos, que existem há milhões de anos, levando-os inclusive a bater seguidos recordes.
O Rio Grande do Sul, por exemplo, nunca teve tanta chuva quanto agora em maio, que afetou 85% de seu território. As enchentes históricas no Estado, até aqui, tinham ocorrido em 1859 e em 1941, e agora foram superadas. Ondas de calor, secas e enchentes, todos atingiram novas marcas entre 2023 e 2024 em todo o mundo. A seca na Amazônia é a mais forte de toda a série histórica. Recentemente, a Índia conviveu vários dias com temperatura de 52 graus.
Essa antecipação dos eventos climáticos pode significar que eles se tornaram ou se tornarão irreversíveis?
O que a ciência climática projetava, há 20 anos, era que a alta da temperatura em 1,5 grau só ocorreria nas próximas décadas, por volta de 2040. Ainda assim, se continuássemos a emitir gases de efeito estufa. Então, esses eventos severos são, sim, uma surpresa científica. Entre o final de 2022 e começo de 2023, a ciência projetou que a temperatura iria subir 1,3 grau, em razão do terceiro El Niño mais forte da série. No entanto, passou de 1,5 grau e, a certa altura, bateu 1,6 grau de alta. Isso significa que as projeções não bateram, e há uma investigação para entender as razões desse desvio. Na verdade, as águas dos oceanos esquentaram muito e bateram todos os recordes históricos. E não foi só no lugar em que o El Niño torna as águas mais quentes, no Pacífico Equatorial Centro-leste, mas também no Atlântico, que bateu recorde de temperatura sem estar sob a influência do fenômeno. A temperatura mais alta, principalmente no Atlântico Norte, agravou a seca histórica da Amazônia, já esperada com a vigência do El Niño. Nem a chegada do La Niña, a partir do segundo semestre, que promete baixar um pouco a temperatura, vai impedir a alta permanente de 1,5 grau ainda nesta década e não mais em 2040 — o que é algo preocupante.
O que isso significa na prática?
Significa que haverá a continuidade de eventos climáticos severos e frequentes e, portanto, mais danos vultosos, até porque as emissões de gases de efeito estufa continuam a crescer. Vale lembrar que o Acordo de Paris, de 2015, endossado pela COP-26 em 2021, em Glasgow, na Escócia, falava que tínhamos de zerar as emissões líquidas até 2050, para evitar que a temperatura alcançasse o teto de 1,5 grau. Como as emissões ainda estão aumentando após o recorde de 2022 — não há ainda dados de 2023, mas estima-se alta de 1% a 2% sobre 2022 —, o cenário é extremamente grave, porque significa que esses eventos climáticos extremos, como secas e enchentes, não têm mais volta. E se não zerarmos as emissões líquidas até ou antes de 2050, a temperatura poderá, inclusive, ter uma alta de 2 ou até de 2,5 graus.
O que deve ser feito emergencialmente?
Antecipar a meta de zerar as emissões tornou-se uma obrigação de todo o planeta. Isso significa que a transição para energias renováveis deve ser a jato, já que quase 70% das emissões são geradas por combustíveis fósseis. Todos os setores econômicos devem participar desse esforço. Na agricultura, o desmatamento precisa parar urgentemente. É um grande desafio, sem dúvida, já que a transição é custosa, mas não há alternativa. Do contrário, se deixarmos a temperatura avançar 2 ou 2,5 graus, os eventos climáticos serão ainda severos e frequentes.
E as ações de adaptação às mudanças climáticas estão em estágio muito preliminar, certo?
Quer nos países desenvolvidos, quer nos países em desenvolvimento, as ações para ampliar a resiliência em um novo quadro dos eventos climáticos são até agora insuficientes, embora sejam emergenciais. Supondo que a temperatura ficasse 1,5 grau mais alta de forma permanente, o Brasil, por exemplo, teria de realocar uns quatro milhões de brasileiros que residem às margens de rios, em costões íngremes, enfim, em áreas de altíssimo risco de deslizamentos e inundações. Temos de contar com sistemas de alertas muito precisos, uma Defesa Civil mais bem preparada e equipada, locais para abrigar a população em caso de eventos severos. Nada disso está pronto. Nem aqui nem no exterior. Só no Brasil são em torno de 50 mil áreas sujeitas a riscos de deslizamentos ou de inundação.
Chama a atenção o fato de os eventos climáticos severos tornarem-se cada vez mais democráticos, afetando pobres e ricos em todo o mundo…
Essa é a conta a pagar do aquecimento global. Os furacões nos EUA, por exemplo, não estão em maior número, como muitos imaginam. Mas são mais intensos agora, porque as águas do Oceano Atlântico se tornaram mais altas, evaporando mais água e elevando a força dos furacões. Daí porque os furacões da categoria 3, 4 e 5 são mais constantes agora (a escala vai de um a cinco e mede o poder de destruição a partir da velocidade do vento — começam em 130 km e o máximo é de mais de 250km. Antes, um furacão de categoria 5 era algo extremamente raro. Agora, os mais intensos são mais frequentes, ampliando o rastro de destruição. Isso se repete com outros eventos extremos, que podem não ocorrer com mais frequência, mas certamente com tanta intensidade.
A Floresta Amazônica corre o risco de ser transformada em um grande Cerrado?
Nem dá para chamar esse novo ecossistema oriundo da degradação de um novo Cerrado, que é o bioma de savana tropical mais biodiverso do mundo, com uma gigantesca quantidade de carbono armazenado no solo. Esse novo ecossistema será incapaz de armazenar carbono em grande quantidade e terá poucas árvores e fauna.
Mas a Amazônia continuará fundamental para o regime de chuvas?
A Amazônia não só aumenta muito a chuva na própria floresta, alcançando 2,2 e 2,3 metros por ano, mas também exporta uma grande quantidade de vapor de água, cerca de 17 bilhões de toneladas por dia. Uma parte vai lá para os Andes e forma a neve, outra desce para o Sul, o Cerrado, e chega no Centro-Sul do Brasil. Uns 15% dessa umidade alcança o Sudeste, fenômeno que chamamos de rios voadores. Então, se a Amazônia passar desse ponto de não retorno, os rios voadores vão ter a capacidade de transporte de água reduzida em pelo menos 20% a 30%, afetando o Cerrado e o Sudeste, além de elevar a temperatura nessas regiões. Por fim, vai afetar a maior biodiversidade do planeta, provocando a sexta extinção de espécies — a primeira causada por humanos.
O Cerrado também está sendo vítima de um desmatamento extremo?
A Amazônia já foi totalmente desmatada na faixa de 17% ou 18%. No Cerrado, foram 51% dos 2,2 milhões de quilômetros. Isso deve-se à substituição do Cerrado por pastagem e monoculturas de soja, milho e algodão. Em razão disso, o clima do Cerrado está mudando muito, com o bioma mais quente, reciclando menos água. E isso traz risco até para continuidade do próprio Cerrado que, em um ponto de não retorno, pode ser convertido em caatinga. Aliás, já estamos a caminho disso, tendo em vista o aumento de áreas de semiárido nas confluências do Cerrado.
Como a degradação desses dois biomas pode afetar as cidades?
O risco mais evidente é o de transformar as cidades em ilhas urbanas de calor. Tudo porque, como as cidades brasileiras têm pouquíssima vegetação, a temperatura fica cada vez mais alta. Quando se tira a vegetação, a energia solar vai direto para o solo, evapora a água ali presente e aumenta muito a temperatura. Na Amazônia, lugares muito desmatados, ocupados por pastagens, apresentam temperaturas 3 graus mais quente do que na floresta na estação seca do ano. Em São Paulo, em média, a temperatura do Centro da cidade é 4 graus acima em comparação às áreas fora da capital ocupadas por Mata Atlântica e na mesma altitude. Então, esse efeito de ilha urbana de calor, olhando para São Paulo, já é uma realidade. Na década de 1930, São Paulo não tinha nenhum ano com chuva diária acima de 100mm. Hoje, ocorrem duas ou mais precipitações anuais acima disso. Enfim, os impactos no clima são profundos nas cidades.