BRASIL FICA PARA TRÁS NA DISPUTA PELA PRODUÇÃO DE VEÍCULOS ELÉTRICOS
Especialistas do mercado defendem que o País implemente uma política nacional de eletromobilidade, a exemplo das principais economias do mundo Por: Fernanda Thurler
A eletromobilidade é uma realidade em todo o mundo e, até o fim da década, poderá chegar a 145 milhões de unidades, segundo a Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês). Somente no ano passado, os modelos elétricos de automóveis e de veículos comerciais leves representaram 9% das vendas mundiais: 6,6 milhões de unidades, um crescimento de 109% sobre o volume de 2021.
Na Europa e nos Estados Unidos, progridem os acordos para impedir a venda de novos veículos movidos a gasóleo ou a gasolina a partir de 2035. Mas o Brasil poderá ficar para trás na disputa de mercado pela produção dos veículos do futuro, caso não seja implementada uma política nacional de eletromobilidade, a exemplo do que foi feito nas principais economias do mundo. O alerta é feito por representantes do setor, como o presidente da Associação Brasileira [ Por: Fernanda Thurler Fotos: Divulgação, banco de imagens Google ] de Veículos Elétricos (ABVE), Adalberto Maluf, para quem o País não pode assistir impassível a essa grande revolução tecnológica, que já está mudando a economia e a sociedade dos principais países.
“Diferentemente do resto do mundo, que incentiva a indústria do futuro, com foco em índices de segurança e emissões cada vez mais rígidos, o Brasil optou por estimular a compra de veículos independentemente da tecnologia ou eficiência energética. Com isso, o País ficou para trás na corrida pelos veículos do futuro, todos elétricos, autônomos e conectados”. Segundo Maluf, as políticas de transporte limpo devem ser o eixo de uma nova estratégia nacional pela recuperação da competitividade da indústria brasileira e pela geração dos empregos de qualidade para as futuras gerações. Ele ressalta a necessidade urgente de uma política industrial que priorize a inovação e as novas tecnologias.
“O Brasil não pode ficar tão defasado em relação aos padrões de emissão e segurança dos países desenvolvidos, sob pena de nossa indústria ficar cada vez menos competitiva e menos conectada às cadeias produtivas globais”, afirma. Para reverter esse quadro, entidades e empresas representativas do setor estão levantando subsídios para a elaboração da Carta da Eletromobilidade, que conterá um conjunto de propostas para os futuros governantes sintonizarem as políticas públicas no Brasil às estratégias já em curso nos principais países. Entre elas, a defesa da eletrificação do transporte público no Brasil (principal fonte de poluição do ar nas grandes cidades), o reforço da legislação ambiental no ambiente urbano e o apoio à conversão das frotas de transporte de carga a diesel para os combustíveis sustentáveis.
POLÍTICAS PÚBLICAS
Henry Joseph Jr., diretor técnico da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), também defende a formulação de políticas públicas para viabilizar a transição para o uso de veículos elétricos. Na sua avaliação, a exemplo do que ocorre em países europeus e asiáticos e nos Estados Unidos, o poder público brasileiro deve estabelecer políticas para acelerar os cenários de descarbonização. “E não estamos falando de incentivos financeiros ou bônus aos compradores, como ocorre sobretudo na Europa. Mas é possível estimular o consumo de carros mais ‘limpos’ com medidas como menor tributação, ou ‘imposto verde’, descontos ou isenções em recarga, pedágio, zona- azul, rodízio e financiamentos com métrica ESG (ambientais, sociais e de governança das empresas)”, afirma. Joseph Jr. chama a atenção para a necessidade de investimentos do Governo na infraestrutura para a funcionalidade do modal, especialmente nos postos de recarga.
De acordo com estudo realizado pela entidade, dentro de um cenário acelerado, no sentido de acompanhar os movimentos já em curso nos países mais desenvolvidos, seriam necessários recursos da ordem R$ 14 bilhões para a instalação de ao menos 150 mil carregadores para atender os veículos eletrificados. Por sinal, expandir a infraestrutura de recarga é um desafio de amplitude global. Hoje, grande parte dos veículos elétricos pode ser recarregada em tomadas convencionais, porém, uma carga completa requer até oito horas de duração. Estados Unidos e Europa estão à frente, tendo desenvolvido dispositivos especiais que recarregam 80% da bateria em 30 minutos. Em Londres, a prefeitura subsidia a instalação em residências e empresas, enquanto em Israel está em teste a troca, em estações específicas, da bateria descarregada por outra já carregada.
CENÁRIO ACELERADO
O estudo realizado pela Anfavea em parceria com o Boston Consulting Group (BCG) estima, em um cenário mais acelerado, a comercialização de quase 2,5 milhões de veículos eletrificados dentro de três anos. Segundo Joseph Jr., projeções feitas pela associação apontam que os veículos leves eletrificados podem responder por 12% a 22% do mix de vendas no Brasil em 2030. Esse volume poderia subir para uma faixa de 32% a 62% em 2035. De acordo com essas projeções, a indústria brasileira venderia 432 mil veículos leves eletrificados por ano em 2030, atingindo até três milhões de unidades ao ano em 2035.
“Dentro desse cenário, a previsão é que 60% da frota brasileira apresente algum nível de eletrificação” analisa o executivo. Com base no documento, Joseph Jr. afirma que a eletrificação poderá levar a um novo ciclo de oportunidades de negócios no País, “como, por exemplo, a produção e exportação de uma série de componentes, baterias e motores elétricos. Fornecedores de peças, como semicondutores e baterias, poderiam se instalar no Brasil, que tem matéria-prima em abundância para essas novas tecnologias”, sugere. Dessa forma, segundo ele, haveria um incremento em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em toda a cadeia, além do surgimento de startups, promovendo um grande ciclo de investimentos e uma revolução tecnológica no País, beneficiando vários setores, não só o automotivo.
O executivo da Anfavea avalia que, mesmo sob o ponto de vista de um cenário inercial de crescimento, serão necessários altíssimos investimentos em toda a cadeia — pesquisa e desenvolvimento, adaptação de fábricas, desenvolvimento de fornecedores e preparação/treinamento da rede de concessionários etc., para que o Brasil abasteça seu mercado local e se consolide como um polo exportador dessas tecnologias para os países vizinhos e até de outros continentes. “Com mais de 40 fábricas espalhadas pelo País, não incluindo as de fornecedores de autopeças, a indústria precisará entrar em um novo ciclo de investimentos para se manter competitiva e, ao mesmo tempo, garantir 1,3 milhão de empregos diretos e indiretos na cadeia automotiva ou até ampliar esse contingente”, explica.
Adalberto Maluf, presidente da ABVE, corrobora a análise e argumenta que o País tem possibilidade de vir a ser pioneiro nos híbridos flex plug-in e adensar a cadeia do lítio para os elétricos puros, pois tem reservas dos minerais estratégicos para fabricar baterias e a líder a tecnologia dos veículos flex. “Temos de integrar os elétricos aos biocombustíveis. O Brasil não precisa copiar modelos externos para fazer sua transição aos veículos do futuro. Basta não tentar inventar a roda, reduzir distorções que dificultam o desenvolvimento dos veículos elétricos no País e sonhar com a construção da indústria e dos empregos do futuro”, ressalta.
CAPACIDADE GLOBAL
Segundo o relatório de IEA, a capacidade global de fabricação de baterias automotivas de íons de lítio em 2020 foi de aproximadamente 300 GWh por ano, enquanto a produção foi de cerca de 160 GWh. Atualmente a maior demanda está na China, seguida pela Europa e pelos Estados Unidos. O Brasil produz dois dos principais minerais presentes nas baterias: o lítio, produzido pelas Companhia Brasileira de Lítio (CBL), AMG Mineração e Sigma Lithium e o cobalto, produção da Vale na mina de Voisey’s Bay, no Canadá. Além desses dois minerais, as baterias íon-lítio também utilizam manganês, níquel e cobre como matéria-prima.
Estudo do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS), publicado em 2021, destacou o País como dono da sétima maior reserva de lítio conhecida no mundo: 95 mil toneladas que poderiam ser exploradas de acordo com a tecnologia e as leis atuais. Ainda segundo a USGS, o Brasil foi o quinto maior produtor do metal no mundo em 2020, com a produção estimada em 1,9 mil toneladas – as primeira e segunda posições ficam, respetivamente, com Austrália (40 mil/t) e Chile (18 mil/t). Já o cobalto teve sua produção acelerada pela perspectiva de crescimento das vendas de veículos elétricos a bateria – BEVs e veículos híbridos plugáveis – PHEVs.
A Vale, que produz em torno de seis mil toneladas por ano, divulgou no fim de junho a conclusão do estudo de pré-viabilidade para o desenvolvimento de um projeto proposto de sulfato de níquel em Bécancour, na província de Quebec (Canadá). Considerada estratégica pela companhia, a primeira planta de produção de sulfato de níquel totalmente doméstico visa ao fornecimento de produtos de níquel de baixo carbono e alta pureza para a crescente indústria de veículos elétricos.
UE E EUA: FIM DA VENDA DE VEÍCULOS A COMBUSTÃO EM 2035
Dentro do compromisso de zerar as emissões de dióxido de carbono (CO2) dos automóveis novos, assumido no âmbito da Cúpula de Líderes Globais sobre o Clima, a União Europeia (UE) anunciou no fim de junho a redução a zero da venda de veículos movidos a gasolina e a diesel até 2035 no território dos 27 países que compõem o bloco.
Canadá e Estados Unidos seguem na mesma linha e devem encerrar a comercialização de veículos a combustão neste mesmo ano, de acordo com relatório do International Council on Clean Transportation (ICCT). No Brasil, projetos de lei transitam no Senado fixando prazos com intervalos díspares: em 2030, segundo o PLS nº 304/2017, de Ciro Nogueira (PP-PI), ou em 2060, de acordo com o PLS nº 454/2017, de Telmário Mota.
De todo modo, o estudo da Anfavea demonstra que mesmo em um cenário de acelerado crescimento da produção e de venda de veículos elétricos, a renovação natural da frota será muito lenta. A frota circulante de leves ainda terá quase 80% de motores flex (gasolina/etanol), o que, na avaliação de Joseph Jr, não chega a comprometer as metas do País no que diz respeito à redução da emissão CO2, em razão do uso de biocombustível.