A ENERGIA NA ROTA DO HIDROGÊNIO VERDE

A ENERGIA NA ROTA DO HIDROGÊNIO VERDE

A chave para o desejável direcionamento da indústria do hidrogênio para o rumo do energético verde será a precificação do carbono.

Por: Chico Santos

Por força da abundância dos seus recursos naturais, o Brasil vem se posicionando na vanguarda da geração elétrica limpa desde que a eletricidade começou a se massificar no mundo, nas duas últimas décadas do século 19. No século 20, com a geração hidrelétrica e, mais recentemente, com a explosão das fontes eólica e solar. Agora, quando o aquecimento global impõe não somente uma matriz elétrica, mas uma matriz energética limpa, o País surge como potencial candidato a suprir grande parte do mercado global com aquele que vem sendo visto como o energético da sustentabilidade, transitando entre fonte elétrica, combustível e matéria-prima: o hidrogênio.

 

A vocação brasileira para a geração elétrica renovável e limpa manifestou-se simultaneamente à difusão da eletricidade, na década de 1880. Ao longo do século 20, especialmente a partir da década de 1950, o País consolidou essa vocação, colocando em operação, sucessivamente, hidrelétricas cada vez maiores – a maior de todas Itaipu, em parceria com o Paraguai, com 14 mil MW de potência instalada. O Brasil chegou a ter mais de 95% da sua demanda por eletricidade suprida por hidrelétricas.

 

Mesmo agora, com o progressivo esgotamento do potencial de novos aproveitamentos de grande porte, especialmente pelos impactos socioambientais decorrentes, a fonte hídrica responde por 62,5% da capacidade instalada do País, com 109,18 mil MW, segundo os dados do Anuário Estatístico de Energia Elétrica 2021, da estatal Empresa de Pesquisa Energética (EPE).

 

EXPLOSÃO DOS RENOVÁVEIS

 

A partir do final do século 20, com a constatação das mudanças climáticas e dos seus efeitos sobre o aquecimento global, provocado pelas emissões de gases de efeito estufa na atmosfera, especialmente o gás carbônico (CO2), iniciou-se uma reviravolta no setor energético. O mundo, que vinha produzindo a maior parte da sua eletricidade a partir de hidrocarbonetos e, em alguns países, de fonte nuclear, precisava de uma matriz elétrica mais limpa e renovável.

 

Sem a alternativa hídrica tão abundante, a saída foi investir em tecnologias de geração até então quase experimentais e pouco competitivas, especialmente a energia do sol e a dos ventos. Uma tendência que ganhou contornos de urgência absoluta com a crescente insegurança das sociedades em relação à energia nuclear, temor acentuado a cada novo acidente com usinas atômicas, cujos marcos foram Three Mile Island (1979 – EUA), Chernobyl (ex-URSS – 1986) e Fukushima (Japão – 2011).

 

Em poucos anos, as fontes eólica e solar ganharam competitividade e tornaram-se focos centrais dos investimentos, especialmente na Europa. No Brasil, o despertar para essas alternativas ocorreu na metade da primeira década deste século e novamente o País constatou que, como acontecera com as hidrelétricas, tinha potencial para avançar rapidamente nessas fontes renováveis.

 

Segundo dados da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), a capacidade instalada de geração solar no Brasil saltou de apenas 22 MW em 2005 para 20.177 MW este ano e já com projetos em construção ou contratados para alcançar 30.203 MW em 2024. Segundo os dados da EPE, a capacidade instalada do parque eólico fechou 2020 com 9,8% da matriz elétrica brasileira. Também segundo a EPE, no seu Plano Decenal de Expansão Energética 2030 (PDE 2030), de 2026 a 2030, a fonte eólica terá expansão de 11.875 MW, a uma média anual de 2.375 MW. Mas a presidente da ABEEólica, Elbia Gannoum, considera a estimativa conservadora e prevê que essa expansão ficará em torno de 3 mil MW anuais, o que elevaria a capacidade do parque gerador eólico a quase 50 mil MW naquele ano.

 

PLACAS FOTOVOLTAICAS

 

A trajetória da energia solar produzida a partir de placas fotovoltaicas é mais recente, mas tende a seguir o mesmo rumo da eólica. Os dados da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) mostram que, partindo do zero em 2011, a fonte alcançou 9.451 MW de capacidade instalada em junho deste ano, divididos em 6.024 MW de geração distribuída e 3.427 MW de geração centralizada.

 

A geração distribuída é aquela do autoprodutor, residencial ou não, a maior parte deles conectada à rede de distribuição regional da qual recebe créditos por eventuais excedentes gerados e que são injetados naquela rede. Já a geração centralizada é aquela constituída pelos parques eólicos de grande porte, conectados ao Sistema Elétrico Nacional (SIN) e despachados segundo a lógica do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).

 

Como a geração solar vem, desde 2019, sendo a mais barata nos leilões de energia nova promovidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), a expectativa dos especialistas é que haja uma explosão cada vez maior dessas instalações. O desenvolvimento das energias eólica e solar vem contribuindo para que a matriz elétrica brasileira permaneça uma das mais limpas do mundo, mesmo com a recente expansão das termelétricas convencionais movidas a vários tipos de combustíveis, especialmente a gás natural, que alcançaram, no final do ano passado, 23,4% da matriz elétrica do País.

 

A expansão das termelétricas tem sido determinada principalmente por razões de segurança energética, seja em decorrência da variabilidade da geração solar e eólica, seja devido à persistente redução da afluência de água para os reservatórios das hidrelétricas na última década. Outro fator importante é que as principais hidrelétricas recentemente construídas, como as de Belo Monte, a maior e 100% brasileira, com 11.233,1 MW, de Jirau (3.750 MW), e de Santo Antônio (3.568,3 MW).

 

São usinas sem reservatório, denominadas a fio d’água, que só geram perto da capacidade plena quando o rio está cheio. Na atual crise hídrica pela qual o País está atravessando, com necessidade de economizar ao máximo água dos reservatórios das hidrelétricas para enfrentar o período de seca sazonal que vai até novembro, as eólicas, em plena “safra” de ventos no Nordeste, e as termelétricas têm sido fundamentais para o atendimento à demanda.

 

Na quinta-feira, 19 de agosto, por exemplo, para uma demanda total de 70.302 megawatts médios (MWmed), as hidrelétricas geraram 49,19%; as termelétricas convencionais (excluindo nucleares), 28,81%; as eólicas, 17,89%; as nucleares, 2,93%, e as solares, 1,19% (somente as centralizadas). Os dados são do ONS.

 

 

HIDROGÊNIO VERDE

 

O mesmo aquecimento global que estimulou o surgimento de novas fontes de energia elétrica está empurrando o avanço de outras tecnologias associadas à descarbonização atmosférica, e a maior delas é a sintetização em massa de um dos elementos básicos da natureza, o hidrogênio, a partir de fontes limpas.

 

Com elevado poder calórico e múltiplas aplicações, ele é a principal aposta da Ciência hoje para substituir os hidrocarbonetos na maioria das suas aplicações, incluindo combustível para transporte e insumo para a produção de maté-rias-primas básicas como aço, no lugar do carvão, e produtos químicos, como já ocorre na cadeia dos fertilizantes nitrogenados. Sua conexão com o setor elétrico ocorre por vários caminhos, começando pelo fato de que sua produção é eletrointensiva. Produzido a partir de fontes limpas como a hídrica, a eólica e a solar, ele é o chamado hidrogênio verde, maior aposta na luta contra as mudanças climáticas.

 

Extraído da água por meio do processo chamado eletrólise, ele pode ser armazenado em grandes vasos e usado depois para a produção dessa mesma energia elétrica, preenchendo os espaços vazios deixados pela variabilidade dos ventos e pelo ciclo solar, ou mesmo para poupar água das hidrelétricas. A estatal Furnas Centrais Elétricas inaugurou no primeiro semestre deste ano, em parceria com outras empresas e centros tecnológicos, uma usina-piloto de eletrólise para a produção de hidrogênio destinado à geração elétrica.

 

A companhia usa água do reservatório da hidrelétrica de Itumbiara, entre Minas Gerais e São Paulo, e o processo é movido por uma pequena usina solar fotovoltaica. “O século 21 será do hidrogênio, assim como o 18 foi da lenha, o 19, do carvão mineral, e o 20, do petróleo”, afirma o professor Nivalde de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) do Departamento de Economia da UFRJ Hoje o mundo produz hidrogênio, principalmente, a partir do carvão (hidrogênio cinza) e do gás natural (azul).

 

Castro afirma que a tendência a médio e longo prazos é a substituição de tudo que gera gás carbônico (CO2) por hidrogênio verde, ainda que a substituição do gás natural, considerado o mais limpo dos hidrocarbonetos e por isso um combustível de transição, deva ser paulatina.

 

CÉLULA A COMBUSTÍVEL

 

Os desafios são muitos para a produção em larga escala de forma competitiva, mas Castro lembra que, como o aquecimento global não espera, as mudanças não podem ser demoradas. Uma das mais à vista é o uso do hidrogênio na forma de célula a combustível para substituir os derivados de petróleo no transporte pesado a longas distâncias (caminhões e navios).

 

Com fartura de sol, ventos e água, o Brasil tem tudo para sair na frente como fornecedor global desse novo insumo/combustível. Castro ressalta que a Europa, mais avançada nas pesquisas, mas menos na disponibilidade de fontes de geração, será uma grande importadora e já está preparando um “hub” de hidrogênio no Porto de Roterdã (Holanda). O Estado brasileiro está ciente da oportunidade e tem trabalhado para viabilizar o arcabouço regulatório que construa as bases para a pesquisa e o desenvolvimento da indústria do hidrogênio.

 

“A ideia é criar uma base de conhecimento sobre o hidrogênio e como direcioná- la para o hidrogênio verde”, destaca Agnes Costa, chefe da Assessoria Especial de Assuntos Regulatórios do Ministério de Minas e Energia (MME). Costa explicou que o MME está lançando uma chamada pública para um programa de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) na área de hidrogênio, atraindo investimentos privados. No dia 4 de agosto, o MME lançou também, por recomendação do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), uma proposta de diretrizes básicas para um Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2).

 

A proposta tem seis diretrizes: Fortalecimento das Bases Tecnológicas; Capacitação de Recursos Humanos; Planejamento Energético; Arcabouço Legal-Regulatório; Crescimento do Mercado e Competitividade e Cooperação Internacional. Costa avalia que a chave para o desejável direcionamento da indústria do hidrogênio para o rumo do energético verde será a precificação do carbono.

 

Ele lembra que os compromissos de descarbonização do Acordo de Paris tornam obrigatório que essa indústria seja uma alternativa plena em 2050, mas entende que, em 2030, ela já será uma realidade. Ciente disso, a EPE trará um capítulo sobre hidrogênio no seu PDE 2031, que ficará pronto no final deste ano.