A JORNADA NO MUNDO DIGITAL É DEFINITIVA PARA O SETOR

A JORNADA NO MUNDO DIGITAL É DEFINITIVA PARA O SETOR

Márcio Coriolano despede-se do posto de presidente da CNSeg, que ocupou por seis anos, e faz um balanço da sua gestão nesta entrevista que contou com a participação especial de sete jornalistas.

Por: Fernanda Thurler

Seis anos depois de assumir o cargo de presidente da CNseg, Marcio Coriolano despede-se do posto e faz um balanço do período que esteve à frente da Confederação em uma entrevista histórica a um grupo de sete jornalistas especializados em seguros. Coriolano avalia alguns dos temas que dominaram a agenda da sua gestão — única em episódios extraordinários, como a pandemia, a guinada de ciclos econômicos, o vaivém na política monetária, o avanço da transição digital do setor e a atualização do marco regulatório. O futuro do setor é também comentado pelo economista.

 

Um dos legados de sua gestão são as “estatísticas”. Agora podemos consultar um banco de dados riquíssimo no portal da CNseg. Quais foram os desafios para sua implementação?

Muitas estatísticas já eram coletadas e tratadas pela CNseg, mas a maioria não era divulgada para o público. A criação do CEM, o Comitê de Estudos de Mercado, partiu da premissa de que estatísticas são uma ferramenta importante, que deve ser ampliada, porém, deve ser encarada apenas como um meio para a análise setorial. Somente análises qualificadas podem diagnosticar situações, provocar o debate e fazer surgir propostas que interessem ao mercado de seguros.

 

Foi, então, que reestruturamos a área responsável pelas análises estatísticas e econômicas, uma Superintendência da estrutura técnica da Confederação. Em consequência, o portal ganhou um elenco maior de estatísticas e, principalmente, de análises. A CNseg é hoje uma referência em análise de dados sobre o setor, com um trabalho sistemático visível por meio de diversas iniciativas adotadas nos últimos anos, a última, a publicação do ranking das empresas do setor. Destaco as edições da Conjuntura CNseg, que é a “âncora” de uma série de dados e análises, que vão do desempenho do setor, passando pela sua articulação com os movimentos da economia e da sociedade, até análises e artigos sobre as várias dimensões dos seguros.

 

O ponto importante disso tudo é sua utilidade prática, seja para o posicionamento de mercado das associadas, seja para formar opinião sobre o ambiente econômico e setorial como subsídios para o Executivo, Legislativo e Judiciário, seja para proposições objetivas sobre vários temas regulatórios, passados e em curso.

 

O aumento da base de consumidores do mercado de seguros é um desafio para o setor desde sempre. Agora, com problemas econômicos e sociais ainda mais evidentes, o que o setor pode fazer para criar produtos com apelo social ou de microsseguros?

A inclusão de novos consumidores é corrida sem linha de chegada não só para o mercado brasileiro de seguros. Em todo o mundo, as seguradoras estudam caminhos para aumentar o nível de penetração dos seguros, que não depende apenas da renda, mas também da relação direta com a rede e os canais de distribuição dos seguros para todos os estratos sociais. E ações educativas são usadas em vários países para reduzir o gap de conhecimento, como, no Brasil, o Programa de Educação em Seguros da CNseg. Agora, indo diretamente à sua questão, com mais restrições econômicas, a flexibilização da construção de planos de seguros, facilitada pela recente desregulamentação da Susep para os ramos de danos e responsabilidades, deverá ser uma solução para as camadas de renda mais baixa.

 

E também o microsseguro, que até há pouco era regulamentado para ser um degrau de seguros mais amplos, foi reestruturado para se tornar uma plataforma. Então, também com essa nova regulamentação da Susep, as companhias já dispõem de uma referência para seguros, que atendam especificamente àqueles que não têm renda para acessar a maioria dos atuais seguros oferecidos.

 

Uma rápida pesquisa na internet evidencia sua obstinada intenção de “pensar o seguro” no Brasil por meio de vários eventos. Que previsão faz para o futuro desse segmento?

As transformações ocorridas nos últimos anos demonstram a importância crescente dos seguros aos olhos de todos, e a capacidade de adaptação do setor aos movimentos adversos da economia e da política. Mas, tal como ocorreu no sistema financeiro, era preciso ampliar as informações e as oportunidades para o melhor julgamento do Governo e da população. Sair das páginas restritas das colunas de defesa do consumidor para as páginas econômicas e sociais das mídias. Foi por isso que resolvemos ser porta-vozes permanentes dos vários benefícios dos seguros, seja para a população, seja para a formação de poupança nacional e da proteção em escala ampliada que desonere o Estado, ainda mais com as restrições fiscais que todos conhecemos.

 

E isso só se faz com permanente debate e exposição nas mídias sociais, em eventos como webinars e outras ferramentas atualmente disponíveis para alcançar mais pessoas. É preciso persistência. Não há bala de prata na comunicação ou no envolvimento da sociedade “de uma vez por todas”. A pandemia mostrou que aquela visão de um consumidor hipossuficiente já foi superada. Ele não só está mais consciente, como muito ativo buscando proteção. A questão está mais na persistência em levar mais informações para que ele tenha condições de fazer as melhores escolhas, e na interlocução com os poderes constituídos para que percebam a importância dos seguros e suas limitações técnicas.

 

Outro objetivo deve ser chegar à proteção da população ainda sem acesso pela via de produtos e serviços flexíveis e, por consequência, mais baratos. Se formos bem-sucedidos nessas linhas, o futuro será de expansão do setor.

 

Qual o impacto, no seguro, da inflação crescente e da queda de renda da população? O mercado está blindado a possíveis desdobramentos econômicos, em virtude, inclusive, da guerra no Leste Europeu? Quais serão os principais desafios para os próximos anos?

A inflação alta é uma variável negativa para o setor porque reduz a renda das famílias e sua disponibilidade de recursos para a compra de proteção, ainda mais em um quadro de desemprego na casa de dois dígitos. Já vimos esse filme antes. No momento, há um cenário de inflação alta e persistente no País, o que tem relação com a inflação global e reflete também o rompimento de várias cadeias produtivas, provocado pelas consequências da invasão da Ucrânia e seus impactos nos preços de energia e alimentos. A duração desse conflito gera repercussões na cadeia global de suprimentos e, quanto mais longa, maiores os efeitos econômicos.

 

Em contrapartida, os preços das commodities, elevados, em razão do conflito, favorecem o Brasil. Pelo lado da demanda da população brasileira, inflação elevada corrói renda, e juros altos encarecem crédito. O manejo de tudo isso fará toda a diferença doravante. E ocorre que, diferentemente de outros períodos de inflação alta, hoje temos instrumentos de política monetária mais aceitos por todos, melhor equacionamento da dívida pública e, mais importante, um setor solvente, capitalizado, maduro e competitivo.

 

Isso fará toda a diferença para a superação dos cenários de taxas de inflação e de juros mais altos. E insisto nas melhores condições do mercado de seguros para oferecer planos mais flexíveis para todos, especialmente nas condições econômicas previstas para os próximos anos.

 

Qual sua visão sobre a ampliação do debate sobre os aspectos ASG no mercado de seguros?

Esse primeiro movimento voluntário do setor preparou o terreno e abriu precedentes para que ações mais concretas relacionadas ao desenvolvimento sustentável pudessem ser materializadas em seguros no Brasil nos anos seguintes. O nível de maturidade com o qual as empresas tratam e desenvolvem ações sobre o tema ainda é, contudo, diferente. Segundo a última edição do Relatório de Sustentabilidade de 2020 da CNseg, cerca de 90% das empresas participantes afirmaram que já integram questões ASG em seus planejamentos estratégicos e 47% incluem critérios de sustentabilidade na gestão de investimentos e nos processos de subscrição de riscos.

 

Apesar de muitas empresas contarem com políticas socioambientais consolidadas, ao criar regras gerais e definir elementos mínimos para todas supervisionadas, a Susep estabelece um parâmetro regulatório para que todas as seguradoras estejam na mesma página. O setor de seguros reconhece que a atuação do regulador é fundamental para construção de políticas que fomentem melhor a gestão de questões ASG.

 

O open insurance e o sandbox são considerados pelo Governo o salto de modernidade que faltava ao mercado de seguros. O que esperar desses dois processos? Que impactos exercerão no mercado brasileiro até dezembro? O cronograma é viável ou há risco de não ser cumprido?

No caso do open insurance, ainda que seu propósito seja aumentar a inclusão securitária e a competitividade, o caminho escolhido precisa ser aperfeiçoado. Grande parte da população brasileira ainda não tem recursos digitais, além do uso de aparelhos celulares. A implementação acelerada, por parte do Governo, o escopo extensivo de ramos e produtos e a incerteza que pende sobre a definição do papel dos corretores na arquitetura do open insurance não rimam com o melhor custo/benefício dessa empreitada.

 

A CNseg tem buscado colaborar muito para que a implantação seja cautelosa e progressiva, até para que o sistema de seguros privados possa ir medindo os benefícios para todos. Sobre o sandbox, está ficando comprovado que é uma boa iniciativa, embora as limitações de acesso digital de grande parte da população e a forte capitalização necessária ao ingresso no sistema de seguros estejam levando as sandboxes a um espaço de colaboração com as empresas incumbentes, mais do que competição.

 

Como o senhor analisa a guinada digital da economia, o impacto dela no seguro e como antevê os próximos capítulos dessa jornada para a indústria de seguros?

A jornada no mundo digital é definitiva, sem ponto de chegada para a expansão do setor. A certeza é de que os inúmeros recursos digitais, a partir da consolidação do 5G, serão mais demandados e permitirão a massificação de serviços inovadores. Mas há uma publicação da PwC, chamada “O abismo digital no Brasil”, mostrando que apenas 1/3 da população brasileira pode ser considerada plenamente conectada. E os outros cidadãos ficam sem conexão quase metade dos meses.

 

O cenário para aqueles com melhor acesso é de indústrias operadas à distância, cirurgias remotas, cidades inteligentes, drones e robôs com uso ampliado, sobretudo, no agronegócio. Esses impactos sociais e econômicos, com o progresso da inclusão social, serão imensuráveis para pessoas, empresas e governos. Em termos operacionais, a digitalização, a partir do maior volume de informações e dados confiáveis, reduzirá os riscos e a subjetividade dos processos, a partir da definição de parâmetros numéricos.

 

Na Presidência da CNseg, o senhor enfrentou o que, possivelmente, entrará para a história com o maior desafio do mundo contemporâneo: a pandemia. Qual é o legado dessa crise sanitária para a área de seguros?

A pandemia despertou em todos o sentimento de finitude e de maior aversão a riscos e, como legado, a necessidade de proteger melhor as pessoas amadas, famílias, negócios e futuro. Essa percepção abriu oportunidades para a expansão dos seguros e também para a cobertura de novos riscos emergentes contra os patrimônios, como o risco cibernético; a saúde, como as pandemias e as mudanças da carga de doenças; e as pessoas, como o impacto da pandemia no emprego, demandando a formação de pecúlios e rendas flexíveis para a formação de poupança que suporte inatividades. Isso parece explicar parte do avanço muito significativo ocorrido de 2020 para cá, ainda que em um quadro macroeconômico bastante complexo.

 

O segmento de vida e previdência avançou 11,5% em 2021, comparado ao exercício de 2020, gerando mais de R$ 192,3 bilhões. O mercado, ao mesmo tempo, mudou a chave para o digital com enorme celeridade, superando obstáculos impostos a outras atividades com as restrições à mobilidade de pessoas ou funcionamento de empresas. Temos pela frente desafios tecnológicos importantes, consumidores mais conscientes sobre a importância do seguro, avessos a riscos, mas com menos recursos para a compra de proteção, o que exigirá um redesenho dos produtos para ampliar a incursão do mercado nas diversas camadas da população.

 

O setor de seguros está entre os principais investidores institucionais do País. As reservas do mercado já ultrapassaram R$ 1 trilhão. Diante do atual cenário macroeconômico, é possível haver um movimento do setor, alinhado com o Governo, para direcionar parte desses recursos a projetos de infraestrutura, desde que assegurado o devido retorno? Se for viável, como essa ação poderia ser efetivada?

Já temos no mundo exemplos de que projetos de infraestrutura financiados com reservas de seguradoras mostram-se viáveis. O Chile, por exemplo, desde os anos 80, criou um modelo que atraiu investidores institucionais. Muitos especialistas estão de acordo que seguradoras e fundos de pensão podem ser atores importantes para reduzir gargalos na infraestrutura, baixar o custo de capital com o uso de parte de suas reservas, sobretudo, nos ramos e modalidades que exigem a formação de provisões de longo prazo, como as de previdência, vida e saúde.

 

É também um caminho de diversificação dos investimentos e de ganhos que podem superar as aplicações financeiras tradicionais. A recente edição da Medida Provisória nº 1.103, que criou o mercado de securitização no sistema de seguros, vai exatamente nessa direção. Entretanto, é fundamental que a regulamentação que trate disso ofereça segurança jurídica, regras claras e estáveis, tendo em vista que as seguradoras têm obrigações futuras de médio e longo prazos com os segurados.