Acordo Mercosul/UE cria oportunidades e desafios para os seguros
Grau de integração alcançado pelo mercado segurador antes da formalização do acordo é um trunfo do setor, mas há desafios regulatórios importantes entre os dois blocos. Por: Cézar Faccioli Fotos: Divulgação, Banco de Imagens
O histórico acordo comercial entre Mercosul e União Europeia (UE), firmado após 25 anos de tratativas, promete transformar o panorama econômico dos países do Cone Sul. Envolvendo um PIB conjunto trilionário, o tratado prevê a ampliação de exportações e investimentos, sobretudo no agronegócio e nas grandes obras de infraestrutura. A expansão do comércio internacional impulsionará a demanda por seguros e resseguros, especialmente em setores estratégicos como energia, transportes e agronegócio.
O mais amplo acerto do gênero negociado pelo bloco do Cone Sul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) envolve um Produto Interno Bruto (PIB) somado de US$ 22 trilhões. Responsável por 80% do comércio entre os dois blocos, o Brasil terá maiores reflexos no crescimento do PIB e na corrente de comércio com os parceiros do Velho Mundo, de acordo com estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Em uma década e meia, portanto, até 2040, o acordo levaria ao crescimento de 0,46% do PIB brasileiro, o equivalente a US$ 9,3 bilhões. O impacto seria ainda mais significativo sobre os investimentos, com aumento de 1,49%.
Na balança comercial, o Brasil teria um ganho de US$ 306,2 milhões, ante US$ 169,2 milhões nos demais países do Mercosul, e uma queda de US$ 3,44 bilhões na União Europeia. O aumento das exportações brasileiras seria contínuo, até alcançar um pico de US$ 12,8 bilhões em 2034.
O avanço seria resultado da combinação de três fatores: queda das tarifas de importação da UE, crescimento das cotas concedidas pelo bloco europeu para exportadores brasileiros e, por último, mas não por fim, redução do custo doméstico de insumos e de bens de capital fabricados no País, devido à queda das tarifas alfandegárias praticadas no Mercosul.
O estudo do Ipea projeta um impacto significativo sobre o valor da produção e o nível de emprego no Brasil. Esses efeitos, contudo, não são distribuídos igualmente para todos os segmentos e atividades. As perdas tendem a se concentrar na área industrial, com destaque para o setor de máquinas e equipamentos, produtos eletroeletrônicos, metais ferrosos, fármacos e medicamentos, produtos de metal, artigos de vestuário e acessórios, veículos e material de transporte.
No caso dos seguros, a perspectiva é de aumento das possibilidades para o Seguro Garantia e Seguro de Crédito, na esteira da ampliação do crédito rural para o agronegócio exportador.
A principal abertura de horizontes de novos negócios para as seguradoras virá, contudo, da atração de investimentos em energia limpa e infraestrutura de transportes e logística. Para Ilan Goldberg, professor convidado da Escola do Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV-Rio), grandes projetos de infraestrutura, como usinas hidrelétricas, ferrovias e hidrovias, não saem do papel sem o respaldo firme de contratos de seguro e resseguro, para proteção contra riscos.
O destaque conferido no acordo à agenda socioambiental, coerente com a defesa brasileira de compromissos mais ousados de redução das emissões de carbono e combate à desigualdade econômica entre as regiões em desfavor do Sul Global, abre espaço para o desenvolvimento de seguros especializados.
Desastres como os de Brumadinho e Mariana, em que danos sociais se somaram aos efeitos econômicos devastadores sobre o valor de mercado e o caixa das empresas envolvidas, ilustram bem a importância dessa frente. A crescente e preocupante exposição de dados pessoais, num contexto de disputas regulatórias e geopolíticas no rastro da expansão do poderio das big techs, dirige o foco a outro segmento de grande potencial de expansão: o seguro para riscos cibernéticos,
como o desvio de dados e a invasão de centrais por hackers.
Hidrogênio verde
O Brasil tem vantagens comparativas para tecnologias de baixo carbono, como a produção do chamado ‘hidrogênio verde’, que gera vapor d’água na combustão, mas, para ser ambientalmente adequado, não aceita o uso de combustível fóssil na quebra da molécula de água. Pela ampla oferta e pelo potencial de geração eólica e solar, o Brasil tem tudo para atrair alguns dos maiores projetos de hidrogênio verde. Com metas ambientais ambiciosas, como a redução drástica de emissões poluentes pelos transportes até 2030, a União Europeia precisa de parcerias nessa área, como destaca o economista Adhemar Mineiro.
Representante do Dieese e de centrais sindicais nas discussões paralelas da Alca e da preparação do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, Mineiro ressalva que as projeções disponíveis sobre os impactos do acordo partem de modelos estáticos.
“Ao longo das negociações para a regulamentação do acordo, que ainda espera aprovação dos parlamentos para entrar em vigor, será necessário levar em conta a reação de outros atores do cenário global, como os Estados Unidos (às voltas com a guinada imposta pela eleição de Donald Trump) e a China, ao mesmo tempo maior mercado e principal investidora nos países do Mercosul”, diz Mineiro.
Mesmo com as ressalvas quanto ao dinamismo do cenário internacional, em momento de forte turbulência, a maior parte dos analistas converge quanto aos setores mais capazes de se beneficiar a curto prazo da conclusão do acordo Mercosul/UE. A grande maioria dos setores do agronegócio brasileiro apresentaria ganhos significativos com a redução de barreiras alfandegárias.
A própria resistência de bancadas parlamentares ligadas a produtores agropecuários em países como França e Polônia ilustra a competitividade brasileira. O desafio é atender aos padrões sanitários e ambientais mais rigorosos do que os nacionais, além de ficar exposto ao monitoramento internacional de quaisquer impactos sobre os biomas em que as unidades produtivas estejam situadas, como Amazônia, Pantanal ou Cerrado, de onde sai a maior parte da soja brasileira, por exemplo, e parte significativa da oferta de carne.
Experiências regulatórias
Desafio semelhante ao dos produtores rurais, mas em condições até mais difíceis, será enfrentado pelas seguradoras instaladas no Brasil. O professor Ilan Goldberg ressalta que a União Europeia dispõe de experiências legislativas e regulatórias mais avançadas do que as brasileiras. A UE, além disso, tem uma estruturação como bloco mais avançada do que o Mercosul, o que facilita a unidade entre os negociadores do outro lado do Atlântico. A oportunidade de aprender e absorver as melhores práticas europeias é valiosa para os integrantes do Mercosul, mas demanda uma rápida capacidade de adaptação a um cenário de competição mais intensa e qualificada.
O acordo Mercosul/União Europeia abre portas para o intercâmbio de informações e conhecimento, mas, legalmente, não altera o status quo dos seguros e dos resseguros no Brasil, conforme alerta o professor Ilan Goldberg. O regime do resseguro é concorrencial desde 2008, com a sanção da Lei Complementar 126, que pôs fim ao monopólio exercido pelo IRB Brasil Resseguros desde sua criação, na Era Vargas.
Desde então, o resseguro é objeto de exploração pela iniciativa privada. A Lei Complementar 126 estabeleceu diferentes espécies de empresas de resseguros (locais, admitidas e eventuais), cada qual com direitos, obrigações e preferências à exploração dessa atividade econômica.
A transição para um ambiente mais forte concorrencialmente, na esteira do acordo com a União Europeia e da atração de grandes projetos de investimento, deverá ser facilitada pela presença de gigantes de origem europeia que se organizaram no mercado brasileiro como resseguradoras locais, a exemplo da Munich Re, da Alemanha.
Vale ressaltar que a existência de acordos em paralelo com a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA, na sigla em inglês), que reúne países como Islândia, Noruega e Suíça, amplia o alcance da integração com o Velho Continente, de acordo com Adhemar Mineiro. A Suíça tem peso relevante nos mercados financeiros e de seguros, sendo sede da Swiss Re, que recorreu ao mesmo expediente da Munich Re, de atuar como resseguradora local no Brasil.
O grau de integração em seguros e resseguros alcançado mesmo antes do acordo Mercosul/UE é um trunfo essencial para que a indústria brasileira do setor se beneficie dos investimentos esperados com a efetivação do tratado. Ilan Goldberg enfatiza que a cobertura para grandes riscos, como a exploração de petróleo ou a navegação comercial transmarítima, é essencialmente internacional, demandando muitas vezes que o resseguro aumente a garantia das seguradoras envolvidas em cada projeto. Esse traço é comum a países desenvolvidos ou emergentes, de acordo com o professor da FGV.
“As seguradoras de capital estrangeiro estruturam-se no Brasil como empresas locais há anos, em conformidade com o que a lei e a regulação brasileira determinam, portanto, não se justifica duvidar da competitividade nacional ou temer uma desnacionalização da atividade”, diz Goldberg.
Para ele, se ao final de cada exercício financeiro as empresas remetem lucros às matrizes delas no exterior, isto não deve ser visto como um problema. Pelo contrário. “Em um mundo globalizado como o atual, é de se esperar que o acordo Mercosul/UE potencialize ainda mais iniciativas como esta”, conclui.