Além das águas: histórias de resiliência e desafios do Rio Grande do Sul
Ritmo de recuperação do estado abalado pelas enchentes que inundaram cidades inteiras no ano passado surpreende: repasses públicos bilionários foram destinados à reconstrução. Por Vagner Ricardo : Fotos Divulgação, Banco de Imagens
Prestes a completar um ano, a histórica enchente do Rio Grande do Sul, ocorrida entre abril e maio de 2024, é uma ferida coletiva em cicatrização. Ruas, pontes, estradas e casas destruídas, deslizamentos, mortes e máquinas de construção pesada por todos os lados são lembranças vivas da tragédia ambiental, que coleciona relatos dramáticos dos sobreviventes.
Da mesma forma, surpreende o ritmo de recuperação de um estado cujas perdas econômicas foram estimadas em mais de R$ 100 bilhões. A resiliência venceu e está presente em todo o Rio Grande do Sul, alimentada por recursos públicos bilionários, investimentos privados e, em menor escala, por seguros contratados.
Antes de 2024, a aposentada Vera Lúcia Moraes, moradora de Rio Pardo, um dos municípios mais afetados pela tragédia climática, acreditava que o pior evento climático ocorrera em 2015, quando uma chuva de granizo causou enorme destruição na região, incluindo o telhado de sua casa sem laje.
No auge daquele evento extremo, ela abrigou a neta debaixo da mesa e pôs um travesseiro na cabeça para evitar ferimentos graves causados por pedras de gelo graúdas. Após o evento, colocou telhas de zinco no lugar das de amianto e, por anos seguidos, o ruído ensurdecedor das chuvas mais fortes foi o único incômodo.
As enchentes de 2024 atingiram seu terreno e a obrigaram a se deslocar para a casa de um dos filhos numa área mais alta, onde permaneceu por 20 dias, sem água e sem luz e dependente da comida que chegava de barcos. Além da ilusão de segurança, ela perdeu roupas, armários, janelas, portas e pisos da casa. “Salvei a geladeira”, resigna-se Vera, que conseguiu levar o equipamento para fora do alcance das águas. Só o Rio Jacuí subiu 24 metros, deixando parte da cidade submersa.
Outros moradores do município tiveram perdas também pesadas. Uma minimercearia instalada em frente ao balneário dos Ingazeiros submergiu quando as águas alcançaram dez metros de altura. Já o Restaurante Costaneira, construído de madeira e point da Praia dos Ingazeiros, que antes ocupava a margem do rio, escapou da destruição por um detalhe: sua base flutuante desgarrou-se do píer e parou na estrada. Hoje, ocupa uma área afastada da margem do balneário dos Ingazeiros.
Como milhares de moradores da cidade, Vera vê sua vida voltar ao normal devagar, depois de receber ajuda de pouco mais de R$ 6 mil, entre verbas federal e municipal, e utilizar parte da aposentadoria para recompor seu lar.
Os primeiros temporais ocorreram no Vale do Rio Pardo no dia 27 de abril. Santa Cruz do Sul, por exemplo, conviveu com dez dias de chuvas ininterruptas e, após 30 dias, acumulou 60% da chuva estimada para o ano. O município localiza-se a 155 km de Porto Alegre, no centro do estado. Os danos ficaram concentrados na infraestrutura e no bairro Várzea. A rodoviária ficou submersa por semanas, o bar do Clóvis, na mesma quadra, perdeu todas as mercadorias e o público, porque os passageiros passaram a saltar quatro ruas acima. Na região do Vale do Rio Pardo, outros municípios tiveram perdas mais acentuadas: casas, comércio e indústrias desapareceram.
No estado, estima-se que quase 80 mil pessoas ficaram desabrigadas, 2,3 milhões foram impactadas pelas chuvas e 200 perderam a vida. Por fim, a jornada das enchentes atingiu Porto Alegre. O Rio Guaíba subiu 5,33 metros, segundo a prefeitura local, um recorde desde 1941.
Reconstrução
Em resposta aos impactos devastadores das enchentes, ações rápidas e coordenadas dos poderes públicos aceleram a reconstrução do estado e ampliam a resiliência climática. A pedido da Revista de Seguros, o governo do estado levantou as principais medidas para fortalecer a prevenção e a resposta a eventos extremos em todo o Brasil.
O governo estadual destinou mais de R$ 6,7 bilhões às áreas de Habitação, Infraestrutura, Saúde, Educação, Defesa Civil, Meio Ambiente e Desenvolvimento Social. Foi também criado o Plano Rio Grande para estruturar a reconstrução e adaptação climática no valor de R$ 550 milhões, incluindo projetos de modernização e ampliação de sistemas de contenção de cheias.
Na infraestrutura de transportes, os aportes de R$ 1,2 bilhão destinam-se à reconstrução de pontes e estradas afetadas e os de R$ 1,3 bilhão, para concessão de rodovias no Vale do Taquari e no norte do estado. Estruturas como as 16 pontes do Bloco 2 foram projetadas com cota elevada e drenagem reforçada para resistir a novas enchentes.
Com menos burocracia para liberação de recursos, criou-se o Fundo do Plano Rio Grande (Funrigs), que se destina a centralizar e agilizar a aplicação de R$ 14 bilhões nos próximos três anos.
Para a retomada da economia, em particular dos pequenos negócios, foi lançado o programa MEI RS Calamidades, que ofereceu auxílio financeiro, consultoria especializada e acesso a serviços para microempreendedores afetados.
Essas medidas estão puxando a recuperação do mercado de trabalho. Tanto que, após um período inicial de queda nos empregos formais, o estado registrou saldo positivo na geração de empregos a partir de julho, alcançando em novembro o terceiro maior número de contratações do País.
Sobre medidas específicas para ampliar a resiliência, aprovou-se a Política Estadual de Proteção e Defesa Civil (PEPDEC), a fim de estabelecer um marco legal para prevenir e mitigar desastres, promovendo maior coordenação entre os entes federativos e a sociedade civil.
Ao mesmo tempo, foram investidos mais de R$ 550 milhões na aquisição de radares meteorológicos, instalação de estações hidrológicas e desenvolvimento de modelagens hidrodinâmicas para previsão de eventos climáticos extremos.
Além disso, a criação do Centro Estadual de Gestão Integrada de Riscos e Desastres (Cegird), previsto no Plano Rio Grande, será o centro de referência para o monitoramento e resposta a crises, com tecnologia de ponta para assegurar a continuidade operacional, mesmo em emergências. Simultaneamente, estão sendo estruturados nove Centros Regionais de Proteção e Defesa Civil, com custo estimado de R$ 180 milhões, para descentralizar e fortalecer a resposta local a desastres. Estão sendo construídas casas populares a partir do programa “A casa é sua – calamidade”.
Em nota, o estado informa que assumiu a prevenção como política de longo prazo, investindo em infraestrutura resiliente e em sistemas de previsão e resposta a desastres. Lembra que o alinhamento entre os governos estadual e federal viabilizou investimentos robustos e estratégicos. Adianta que o Rio Grande do Sul busca referências como a Holanda na gestão de cheias e pode se tornar um modelo de resiliência climática para outras regiões do Brasil. Finaliza que há um efetivo avanço na gestão de riscos, ao integrar educação e cultura de prevenção, o que demonstra o compromisso do governo estadual em transformar a tragédia em um ponto de inflexão para a construção de um futuro mais seguro e resiliente.
Seguros
O mercado segurador pagou indenizações, benefícios, resgates e sorteios no valor de R$ 13,1 bilhões em 2024 no Rio Grande do Sul, alta de 67,6%. Só os seguros de Danos e Responsabilidades, os mais afetados pelas chuvas torrenciais, geraram indenizações de R$ 8,5 bilhões, com expansão de 136,3% sobre 2023, contra alta de 5,3% na receita anual (R$ 9,6 bi).
A diferença entre arrecadação e indenizações foi de cerca de R$ 1,1 bilhão apenas e deve-se, majoritariamente, aos sinistros decorrentes das enxurradas. Ao todo, incluindo todos os ramos (exceto Saúde), a arrecadação no RS alcançou R$ 31,1 bilhões, alta de 5,7%, resultado puxado pelas coberturas de Pessoas (Vida e Previdência), com receita de R$ 19 bilhões.
De qualquer forma, olhando os números das perdas econômicas no Rio Grande do Sul, a participação do seguro no nível de proteção é muito baixa. “O brasileiro não tem senso de prevenção. As tragédias modificam esse comportamento temporariamente, porque as pessoas ficam mais sensíveis à necessidade de proteção. Mas isso não é o ideal. O senso de prevenção deveria ser permanente, independentemente de ocorrências do tipo da que houve no estado. Mas, desde maio passado, houve aumento da procura por seguros, sobretudo os de modalidades diretamente ligadas à tragédia, como o de Automóvel e o Residencial”, assinala o presidente do Sindicato das Seguradoras do Rio Grande do Sul, Ederson Daronco.
O corretor de seguros Augusto Muller, de Santa Cruz do Sul, diz que a experiência da tragédia não aumentou a contratação de seguros de forma significativa, sobretudo nos ramos patrimoniais, um dos mais afetados. “Muitos clientes tiveram que arcar com o prejuízo, porque as coberturas de enchentes e alagamentos não estavam contratadas. Alguns se interessaram em fazer endossos ou renovação de contratos após a tragédia, e outros deixaram de ampliar a cobertura em razão de preços elevados ou restrições em suas regiões, explicou ele, acrescentando que locais em que a água chegou ou tem risco de chegar são considerados riscos excluídos nas condições gerais.
Daronco admite que as seguradoras adotaram uma postura mais cautelosa de aceitação de riscos, declinando de proteção de alagamentos e enchentes em áreas propensas a cheias, porque causaria um desequilíbrio atuarial mais severo para o mercado. “É um impasse que precisa ser debatido, mas que tende a ser resolvido a médio prazo”, acredita.
Ações federais destinadas à recuperação do RS
Em balanço das ações de recuperação do Rio Grande do Sul, apresentado em audiência na Comissão Especial sobre Prevenção e Auxílio a Desastres Naturais da Câmara dos Deputados, o titular da Secretaria Extraordinária do Governo Federal para a Reconstrução do RS, Maneco Hassen, assinalou que os investimentos da União, estado e municípios alteraram a previsão inicial de recessão para um efetivo crescimento do PIB gaúcho.
“Não há dúvida de que os aportes do Governo Federal e a força da população gaúcha permitiram que a economia do Rio Grande do Sul crescesse mais do que todos os outros estados brasileiros no ano passado.”
No encontro, ele examinou os repasses do pacote de R$ 141 bilhões destinados a ações da União no estado desde o início da tragédia, com destaque para:
- R$ 2,1 bilhões para a reconstrução, beneficiando 429 mil famílias;
- R$ 4,5 bilhões para a disponibilização de 22 mil residências no âmbito do programa Minha Casa, Minha Vida Reconstrução;
- R$ 31 bilhões do BNDES e do Pronampe para apoiar 66 mil empresas;
- R$ 8,9 bilhões em descontos e crédito para 147 mil produtores rurais;
- R$ 1,4 bilhão em planos de Defesa Civil aprovados para 269 municípios gaúchos; R$ 23 bilhões relativos à suspensão da dívida do estado com a União.