Brasil em chamas exige cautela na subscrição de seguros
Brigadas contra incêndio são essenciais em locais onde faltam unidades de Corpo de Bombeiros. O número de incêndios cresceram 24,8% de janeiro a junho deste ano, em comparação a 2023, para 137.121 eventos. Por: Chico Santos
A temporada de incêndios florestais no Brasil tem sido particularmente rigorosa neste ano e atraído atenções diariamente pelas trágicas imagens de destruição vegetal e sofrimento animal transmitidas pelas emissoras de TV. Embora sejam os mais numerosos e representem a tradução mais visível dos desastres que o fogo pode causar, as ocorrências florestais ainda não são os maiores responsáveis por tragédias envolvendo vidas humanas.
Essa é uma prerrogativa dos incêndios urbanos que só repercutem nos momentos de grandes catástrofes, como foram os casos da Boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, que ceifou 242 vidas em janeiro de 2013, ou da tragédia do Ninho do Urubu, no Rio de Janeiro, que matou dez jovens entre 14 e 16 anos em fevereiro de 2019.
A percepção da localização dos incêndios e de onde eles causam mais mortes é baseada em observações de especialistas que acompanham o problema, porque as estatísticas disponíveis, tanto do número de incêndios quanto do total de mortos por ano, não têm um grau de detalhamento que permita separá-las claramente por origem.
No primeiro semestre deste ano, ocorreram no Brasil 137.121 incêndios, um aumento de 24,79% sobre o número observado no mesmo período do ano passado. Ao longo de 2023, foram 276.127 ocorrências, com crescimento de 2,64% sobre 2022.
Os dados são do Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e Justiça Criminal (Sinesp), do Ministério da Justiça, criado em 2004 para compilar dados fornecidos pelos Corpos de Bombeiros Militares (CBMs) dos estados, sem detalhamento por origem.
O engenheiro Rogério Lin, superintendente do Comitê Brasileiro de Proteção contra Incêndio (CB-24) da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), estima que, do total de casos de 2023, cerca de 180 mil (65%) tenham sido incêndios florestais, também conhecidos como fogo na mata.
As estatísticas de mortes são fornecidas pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS) e separadas segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID). Segundo o DataSUS, o Brasil registrou em 2022, último dado disponível, 1.444 mortes por fogo ou fumaça, entre elas incluídas as agressões com uso desses meios e as mortes por exposição a fumaça e fogo sem intenção determinada — 0,76% menos do que as 1.455 de 2021.
Excluídas as duas classificações, foram 961 óbitos em 2022, com aumento de 4,57% sobre 2021, quando morreram 919 pessoas por fumaça e chamas. As tragédias fazem os dados saltarem. Por exemplo, em 2013, ano do incêndio da Boite Kiss, morreram 1.261 pessoas pela classificação restrita e 1.762 pela ampla.
CONTEXTO MUNDIAL
Marcelo Lima, consultor do Instituto Sprinkler Brasil, entidade voltada para a difusão do combate a incêndios em edificações por meio de chuveiros automáticos, conhecidos como sprinklers, afirma que o Brasil não está mal posicionado no contexto mundial em termos de segurança contra incêndio, embora haja muito espaço para melhorar.
“Estamos melhores do que todos os países da América Latina? Sim. Estamos melhores do que muitos países da Europa? Sim. Estamos no mesmo nível de países como Estados Unidos, Alemanha, Canadá e Austrália? Não”, pondera.
Em relação às estatísticas de morte, Lima, com quase 40 anos dedicados ao setor, até vê o Brasil à frente dos Estados Unidos, embora admita haver uma margem de erro relativamente alta nos dados, que ele calcula em torno de 20%.
O especialista vê avanços em um contexto geral ainda deficitário na segurança contra incêndios. “Fazemos muita coisa. As exigências nas construções novas são bem maiores, especialmente nas grandes cidades. Hoje, um shopping center no Brasil tem uma proteção bastante razoável”, ressalta. Segundo ele, já não se admite, por exemplos, prédios colados um no outro, como se fazia antigamente.
A observação positiva não impede que Lima aponte muitas falhas, a começar pelas lacunas estatísticas e pela dispersão de padrões gerada pelo modelo que concentra nos estados o poder de legislar e definir o padrão de atuação de suas unidades de combate a incêndio, os Corpos de Bombeiros Militares.
O padrão, segundo ele, acaba sendo o modelo estadual mais acabado. Após o incêndio do Edifício Joelma, que matou 187 pessoas em fevereiro de 1974 em São Paulo, a legislação que mais avançou, curiosamente, foi a do Rio de Janeiro. A partir do início deste século, a legislação de São Paulo foi aperfeiçoada e passou a ser o modelo a seguir.
ADOÇÃO VOLUNTÁRIA
Um dos caminhos para dar um padrão de caráter nacional à segurança contra incêndios seria os estados adotarem, de forma voluntária, as normas desenvolvidas pela ABNT. Isso, segundo Lima, nem sempre ocorre. “Na minha opinião, a relação entre os Corpos de Bombeiros e a ABNT está precisando de uma DR”, sugeriu.
“Nós não criamos leis, criamos normas para a sociedade. Temos hoje mais de cem normas publicadas e ativas. Mas, aqui no Brasil, as pessoas só lembram de segurança contra incêndio quando acontece uma grande tragédia”, ressalta Rogério Lin, superintendente do CB-24 da ABNT. Segundo sua avaliação, pior do que a eventual falta de aplicação das melhores normas é o desinteresse da sociedade pelo tema.
“Há um grande distanciamento entre um sistema bem projetado, bem instalado e bem mantido e uma realidade na qual as pessoas não fazem projeto de qualidade, não instalam de forma correta, não compram produtos certificados nem fazem manutenção”, pondera Lin, alegando que falta manutenção dos administradores de prédios, fiscalização das autoridades, educação para a prevenção e punição aos culpados das grandes tragédias.
O técnico considera que as estatísticas de morte no País estão subavaliadas, mas vê espaço para reduzir o número à metade com mais fiscalização, normas bem aplicadas e mais precaução no dia a dia.
Tanto Lin quanto Lima avaliam que o mercado segurador poderia também colaborar, sendo mais exigente na hora da contratação das apólices contra incêndios. Lin disse que falta conhecimento mais profundo aos inspetores das seguradoras sobre o que é essencial para reduzir o risco e, às vezes, não exigem nem mesmo o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB).
RECOMENDAÇÕES & EXIGÊNCIAS
Pelo menos no segmento de grandes riscos, a indústria de seguros entende que vem fazendo seu papel para dar maior segurança à apólice contratada, e consequentemente à unidade contratante, até porque, se esse dever de casa não for feito, dificilmente haverá êxito em uma eventual contestação sobre o pagamento da indenização.
“Se eu não fizer a inspeção e aceitar o risco e, se na hora do sinistro, descobrir que não tinha o hidrante que disseram ter, ou que faltava o extintor que deveriam ter ou que o sprinkler não funcionava, é muito raro eu conseguir negar o pagamento”, disse Marcelo Gil Orlandini, presidente da Comissão de Patrimoniais/Grandes Riscos da FenSeg.
Segundo Orlandini, o que tem acontecido no mercado é que a seguradora, após inspecionar o risco, envia um relatório ao segurado com recomendações e exigências. As recomendações são sugestões do que seria interessante ele fazer para tornar o bem mais seguro.
Já as exigências são diferentes. “Se a seguradora aceitar o risco, vai apontar as exigências, gravar a franquia e dizer que, quando o cliente atender às exigências, vai melhorar a franquia”, explica Orlandini.
O executivo disse ainda que até 2008, quando havia o monopólio estatal do resseguro, exercido pelo IRB, era fundamental na hora de precificar o risco a existência de uma unidade do CBM no município, pois a apólice obedecia a uma tarifa na qual a localização era classificada de ‘um a quatro’, e a melhor classificação era baseada na existência do CBM.
Pesquisa do IPT/SP de 2009, a mais recente disponível, indica que havia CBM em apenas 635 municípios brasileiros, ou 11,41% do total. “Hoje, não é que não seja importante, mas o desconto [na apólice] é baseado mais no potencial existente no local para combate ao fogo”, ou seja, em fatores como equipamentos, treinamento do pessoal e presença de brigada própria.
Segundo Orlandini, algumas empresas maiores até criam suas próprias guarnições de bombeiros e as cedem aos municípios onde estão instaladas. Lima, da Sprinkler, disse que mais importante do que o número de municípios atendidos é o percentual da população do País coberto pela presença de CBM, e este indicador estaria na casa dos 70% no Brasil.
LIGABOM & PADRONIZAÇÃO
O coronel Luiz Frederico Pascoal, presidente do Comitê de Segurança Contra Incêndio e Prevenção do Conselho Nacional dos Corpos de Bombeiros Militares do Brasil (Ligabom), disse que a preocupação com uma padronização nacional de procedimentos manifestada pelos especialistas acima é também “uma das principais diretrizes da entidade”.
Segundo o militar, a própria Lei Federal 13.425/2017, conhecida como Lei Kiss, “estabeleceu diretrizes gerais sobre medidas de prevenção e combate a incêndios”, após a tragédia de Santa Maria. Entre as exigências da Lei, o militar citou a exigência de que os cursos superiores de Engenharia e Arquitetura, bem como o ensino médio correlato, incluíssem nas grades curriculares a disciplina de prevenção e combate a incêndio, exigência que, segundo ele, não vem sendo cumprida.
Pascoal disse que há um esforço no âmbito estadual na busca de convergências de definições e procedimentos. “Algumas diferenças existentes nas normativas estaduais decorrem das próprias especificidades regionais que devem ser respeitadas, mantendo-se certa autonomia local, especialmente em relação aos procedimentos administrativos para regularização das edificações”, ponderou.
O representante da Ligabom disse que a entidade defende o uso das normas ABNT, desde que elas sejam permanentemente atualizadas, e acrescentou que os comitês temáticos da entidade têm atuado na busca da aproximação dos parâmetros estaduais. Segundo o coronel, “um dos aperfeiçoamentos em gestação é justamente a criação de um banco de dados nacional sobre incêndios, alimentado por todos os Corpos de Bombeiros do Brasil”.