BRASIL ENFRENTA CENÁRIOS COMPLICADOS

BRASIL ENFRENTA CENÁRIOS COMPLICADOS

Vilma da Conceição Pinto, 31 anos, foi aprovada para a direção da Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI), cargo que acaba de assumir.

Por: Eliane Lobato

Vilma da Conceição Pinto, 31 anos, foi aprovada para a direção da Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI), cargo que acaba de assumir. Mas as atenções estão voltadas para os fatos de ser mulher e negra, inéditos na história da IFI e incomuns em postos de comando, de maneira geral. Ela não se importa. Reconhece que ressaltar gênero e raça ainda é uma maneira de demonstrar a falta de diversidade na elite do poder no Brasil. Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, Vilma é graduada em Economia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestre em Economia Empresarial e Finanças pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

 

Nesta entrevista exclusiva à Revista de Seguros, uma das primeiras concedidas após o início de sua atuação como diretora da IFI, criada m 2016, ela fala sobre os riscos de não se respeitar o teto de gastos, analisa a política fiscal e alerta para a bomba de efeito retardado para 2022, caso o Governo mantenha dados irreais no Orçamento do ano que vem. Sobre a projeção da IFI de melhora do PIB este ano, ela diz: “Ainda achamos que é possível.”

 

A senhora assume a direção de uma instituição que fiscaliza as contas públicas num momento em que essas contas estão complicadas e a economia, instável. Qual é sua avaliação?

A situação fiscal e econômica é muito ruim, já vem assim desde 2015 e 2016, período em que o PIB caiu mais de 3% ao ano, e as contas carregavam déficit fiscal desde 2014. Hoje, o cenário está complicado porque, especialmente nos últimos meses, o Governo tem demonstrado dificuldade em se ater ao cumprimento das regras fiscais sem medidas adicionais para alterar essas regras. Um exemplo bem claro é a questão dos precatórios, uma despesa obrigatória que está no teto de gastos desde sua criação. Nesse contexto, somado ao momento econômico e à pandemia, temos um desafio muito grande.

 

Como reequilibrar as finanças públicas?

A primeira coisa é o respeito às regras fiscais, o cumprimento delas; depois, pensar em como realizar um ajuste fiscal efetivo e recuperar a capacidade de gerar resultado primário positivo e ampliar investimentos e outros gastos, como os sociais e em saúde, cuja demanda vai crescer na próxima década. O Governo pode equilibrar as contas públicas aumentando receitas, reduzindo despesas ou fazendo um mix das duas coisas. Economizar em função da melhoria da qualidade e eficiência dos gastos e dos estímulos econômicos que advenham disso. Ou seja, o Governo tem algumas alternativas, a questão são as escolhas. A questão é que caminho vai seguir para fazer esse ajuste…

 

Qual seria o melhor?

Depende de decisões do Governo. São escolhas difíceis e com impactos econômico e fiscal relevantes. Se a alternativa for um ajuste pelo lado da receita, há um entendimento de que a carga tributária é muito elevada. É possível verificar nitidamente isso quando se analisa parâmetros internacionais. Nosso nível de carga tributária é comparável à média de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de economia avançada.

 

Assim, o canal via receitas tem que ser muito bem pensado e calibrado. Vamos olhar um pouco para os gastos. Temos algumas mudanças legislativas que foram feitas antes – não chegam a ser reformas, foram ajustes – da existência do teto de gastos, como as mudanças no abono salarial, no seguro-desemprego (de regras de acesso e de duração), no auxílio-doença e, em 2019, teve a Reforma da Previdência, que já foi pós-teto de gastos.

 

E aí encontra-se certa dificuldade para melhorar as contas públicas e gerar resultado fiscal primário positivo. Até é possível vislumbrar uma melhora, mas é muito gradual e, se não houver medidas adicionais de ajustes, vai demorar alguns anos para o País conseguir gerar saldo fiscal primário positivo.

 

Ou seja, é possível, mas não dá para saber se será feito?

Isso. O Governo agora está com a intenção de criar o programa Auxílio Brasil, que vai demandar mais gastos e, para isso, tem que ter uma fonte de financiamento. O Governo encaminhou, em 31 de agosto, projeto de lei no qual está incluído o Auxílio Brasil, mas, olhando bem, o valor é equivalente ao do atual Bolsa Família. Então, não houve mudança. Não se pode simplesmente criar novos gastos sem dizer como vai arrumar os recursos para custeá-los.

 

A IFI projetou, no Relatório do fim de julho, a possibilidade de recuperação fiscal. Mas, naquela época, ainda não sabíamos que a pandemia voltaria ao ponto inicial, que andaria para trás… Sim, mas o impacto econômico e o fiscal de agora são um pouco diferentes, porque no início da pandemia tínhamos muitas incertezas, não se conhecia o que estávamos enfrentando e não sabíamos bem o que fazer. Foram impactos muito fortes na atividade econômica no final do primeiro trimestre de 2020 até o segundo trimestre.

 

Mas, depois, embora tenham ocorrido alguns episódios de fechamento, o impacto na atividade econômica não foi tão forte como o que ocorreu no ano passado.

 

Por quê?

Porque as empresas começaram a se adaptar. O e-commerce cresceu, o home office idem. O setor que teve mais dificuldade de se adaptar às regras de isolamento social foi o de serviços prestados às famílias. Mas o comércio foi um dos que se adaptaram mais rápido. Então, se tiver piora na pandemia, pode alterar, mas acho que não tanto quanto foi no primeiro semestre do ano passado.

 

O PIB do Brasil caiu no segundo trimestre 0,1%, segundo o IBGE. O Relatório de Acompanhamento Fiscal da IFI, de agosto, fazia uma previsão de crescimento econômico acima dos 4,2%, podendo chegar a 5,4%. É um cenário otimista, não é? Será revisado?

 

Na ocasião, foi previsto que o PIB brasileiro iria crescer 4,2% em 2021, com viés de alta – podendo chegar a 5%. E 2,3% em 2022. Com a divulgação do PIB do segundo trimestre, a princípio, o cenário de 2021 se mantém em 4,2% com viés de alta, mas em 2022 o número será pior. Embora ainda não tenhamos revisado o cenário, é possível que em 2022 o crescimento fique um pouco abaixo de 2%.

 

O PIB de 0,1% é muito ruim, mas ainda entendemos que é possível chegar a algo próximo de 5% até o final do ano. Sobre revisões de cenário, temos o padrão de fazê-las duas vezes ao ano – uma em maio e outra em novembro, mas em 2021 as revisões foram mais frequentes. Precisamos, agora, fazer uma atualização de acordo com os indicadores que estão sendo observados.

 

Para 2022, no entanto, o mesmo relatório mostra preocupação com o PIB devido a fatores como inflação alta, aumento de juros, incertezas quanto a demandas externas e risco fiscal. Por quê?

É importante frisar que o Orçamento encaminhado pelo Governo no fim de agosto está com previsões um pouco otimistas, do ponto de vista do crescimento econômico e da inflação, e isso acaba afetando o que está orçado. A inflação prevista para final de 2021, que é utilizada para correção de boa parte das despesas obrigatórias do Governo, está mais baixa que as expectativas de mercado, embora a inflação do meio de ano, que é utilizada para correção do teto dos gastos, tenha sido elevada.

 

Se o Governo projeta inflação baixa para o fim do ano, aumenta a margem do teto de gastos e o espaço para acomodar despesas. Só que isso acaba não sendo real, porque as expectativas, hoje, já mostram um cenário mais adverso para a inflação. Então, a margem não seria aquela que foi colocada no Orçamento. Isso vai demandar, para o ano seguinte, eventual contingenciamento entre outras questões. O cenário é desafiador, porque o crescimento econômico deve ser mais modesto que o esperado, e a alta da inflação está demandando aumento de juros por parte da autoridade monetária, o que afeta também a dívida pública, como temos alertado na IFI.

 

 

Que medidas a senhora considera importantes tomar sobre o risco fiscal neste contexto de inflação alta, pagamento dos precatórios postergados, teto de gastos alterado etc.?

É importante frisar que não fazemos recomendação de política pública. Fazemos projeções e alertas em relação ao que está sendo proposto. De acordo com essa questão do orçamento para 2022, que foi encaminhado no final de agosto, acredito que o principal risco esteja nas premissas econômicas, que servem de parâmetro para estimar receitas e fixar despesas públicas, e que eventualmente precisaram ser revistas.

 

O Orçamento foi feito com base em uma previsão otimista de projeções macroeconômicas em comparação ao que é visto hoje pelo consenso do mercado. E isso vai impactar o cumprimento das regras fiscais, sobretudo, o teto de gastos para o ano que vem.

 

A inflação mais alta é benéfica para as contas públicas?

Vou dar exemplo pela dívida que, agora, está menor. Observamos o crescimento do PIB nominal muito forte, e ele não está acompanhando o PIB real. Ou seja, o que está crescendo muito é o chamado deflator do PIB, que é a inflação do PIB. Como avaliamos a sustentabilidade a partir de um indicador, que é o estoque da dívida pública dividido pelo PIB nominal, e o denominador está crescendo muito, isso faz com que a dívida caia.

 

Mas está caindo por quê? Porque está tendo inflação, e não necessariamente porque o Governo está fazendo uma política fiscal contracionista capaz de equilibrar as contas públicas. Então, é um efeito de alta da inflação que está provocando essa redução no indicador. O Governo está com projeção de inflação para o final do ano, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) de 6,2%. O teto de gastos é corrigido pela inflação medida pelo (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) até junho. O IPCA acumulado em 12 meses, até junho, foi de 8,35%.

 

Então, o que acontece? A inflação que corrige o teto de gastos foi muito maior do que o Governo estava esperando – e a inflação vai corrigir boa parte das despesas obrigatórias, aquelas que são indexadas ao índice. Isso seria benéfico porque abriria uma margem no teto de gastos, conseguiria aumentar as despesas discricionárias. Mas, agora, as previsões de inflação estão aumentando muito e é bastante provável que chegue ao final do ano igual à que corrigiu o teto de gastos.

 

Então, essa margem fiscal vai se reduzindo muito. Os parâmetros utilizados na peça orçamentária podem gerar um problema para o ano que vem, quando houver a revisão desse cenário, e a margem for muito menor do que está sendo prevista.

 

Seria uma maneira de conciliar a aplicação de regras fiscais com o teto de gastos?

O teto de gastos é uma regra fiscal. Além do teto, temos a meta de resultados primário e nominal, a regra de ouro, e tem algumas limitações obrigatórias que acabam virando meio que outra regra. Somos pródigos em criar regras, temos boa variedade delas, mas é preciso harmonizar essas regras fiscais. Estamos vendo problemas na execução, por exemplo, a dificuldade no cumprimento da regra de ouro.

 

Também observamos problemas na questão do teto de gastos, dada a dificuldade de acionamento dos gatilhos e das propostas legislativas que visam tirar gastos da limitação constitucional. Ter boas regras fiscais é importante para manter equilibrada a trajetória das contas públicas. Uma característica fundamental de uma boa regra fiscal é a existência de certa flexibilidade para períodos adversos, como o da pandemia.

 

Há gatilhos para flexibilizar o teto de gastos?

A regra prevê o acionamento de gatilhos, mas esses são alguns mecanismos para tentar ajudar o Governo a reduzir as despesas e manter o cumprimento da regra constitucional. Originalmente, a regra previa acionamento dos gatilhos quando o teto dos gastos fosse ultrapassado. Recentemente, a Emenda à Constituição nº 109/2021 mudou o mecanismo de acionamento dos gatilhos. Agora, eles são acionados com base no orçamento aprovado, sempre que a proporção de despesas obrigatórias em relação à despesa primária total for superior a 95%.

 

Os principais gatilhos são: nenhuma despesa obrigatória pode crescer acima da inflação; os benefícios que são corrigidos pelo salário-mínimo não podem crescer acima da inflação – isso implica que o salário-mínimo seja corrigido somente pela inflação, para que não haja adoção de medidas que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação.

 

Não é possível criar novas despesas obrigatórias, nem conceder reajuste salarial para o servidor público ou promover novas contratações, salvo algumas exceções. Não se pode criar e nem ampliar gastos tributários, que é quando o Governo abre mão de arrecadar algum recurso para beneficiar um setor específico. A mesma vedação se aplica aos subsídios, que podem ser explícitos (impactam diretamente a despesa do Governo) ou implícitos (impactam o endividamento público). O grande problema está em acionar os gatilhos e garantir mais fôlego para o cumprimento da regra fiscal.

 

Qual é a taxa ideal de crescimento do PIB para equilibrar as contas públicas?

Vamos pensar no sentido inverso. Dada determinada taxa de crescimento econômico e de juro real, qual será o resultado primário necessário para manter a dívida/PIB estável? Podemos elaborar uma conta para diferentes cenários de crescimento econômico e juro real. Assim, pensando no atual nível de endividamento público, em torno de 84% do PIB, e tomando como base os parâmetros de consenso para 2022, referente ao crescimento do PIB (em torno de 2%) e para os juros reais (entre 3,5% e 4%), o resultado que o Governo precisaria fazer para evitar aumento do endividamento é de algo como 1,7% do PIB. Hoje estamos em uma situação de déficit fiscal, assim, o esforço fiscal necessário deverá ser ainda maior. Em um cenário de maior crescimento econômico, esse esforço fiscal requerido é reduzido.

 

A senhora sempre demonstra preocupação com a questão social do País. Considera possível o equilíbrio fiscal junto com políticas sociais?

Sim, é possível e legítimo. Conseguimos visualizar isso no período da pandemia. Havia o público que estava no Bolsa Família, o que constava do Cadastro Único e as pessoas que não estavam em nenhum deles – os chamados invisíveis – e precisavam de um auxílio emergencial. A quantidade de pessoas que precisaram do benefício foi muito maior do que se esperava ou se tinha conhecimento, inicialmente. Então, é importante reforçar que esses programas sociais são importantes.

 

Mas têm que ser feitos com responsabilidade fiscal. Antes de criar esses programas, é necessário pensar no melhor desenho da política pública (em termo de eficiência, custo-benefício, alcance etc.). Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, não é possível aumentar um gasto obrigatório continuado sem a respectiva fonte de financiamento. O Bolsa Família é um programa que dá certo e é bem avaliado, uma alternativa seria criar mecanismos para expandi-lo.

 

Qual foi o caminho que o atual Governo encontrou?

O Governo propôs a criação do Auxílio Brasil em substituição à atual Bolsa Família, mas não definiu o custo fiscal do novo programa. Na exposição de motivos do projeto de reforma tributária dos impostos sobre a Renda (PL 2337/2021), foi posto que as alterações tributárias que implicassem aumento de receita poderiam ser consideradas como medidas compensatórias para o novo programa social do Governo. Já no encaminhamento do projeto de lei orçamentária de 2022, a dotação prevista para o Auxílio Brasil é equivalente ao atual valor do Bolsa Família. Assim, essa questão ainda está em aberto.

 

O fato de ser mulher e de ser negra tem sido realçado após a aprovação para o cargo que assumiu. Como é lidar com isso?

Com o tempo, esse realce tem que acabar. Mas, hoje, ele ressalta a falta de diversidade que temos no mercado de trabalho. Por exemplo, o percentual de pessoas ocupadas em cargos de chefia, como diretores e gerentes, tem uma diferença gritante entre pretas e pardas e pessoas brancas: 27% para o primeiro e 73% para o segundo.

 

O que faz seu êxito profissional maior ainda…

Quando entrei na faculdade, não imaginava que teria a trajetória que tive. Tudo o que conquistei no campo profissional é extremamente gratificante. Entrei na faculdade no programa de cotas – que ajuda muito, mas não resolve por completo a questão da desigualdade. Muitos jovens entram em cursos superiores, mas enfrentam dificuldades no decorrer do curso.

 

É fundamental melhorar a qualidade do ensino público para que se chegue ao ponto de não precisar mais das cotas. É preciso melhorar a educação básica para que o jovem de baixa renda tenha acesso à formação de qualidade e possa enfrentar as provas seletivas em condições iguais.