COMUNIDADES ALTERNATIVAS ADMINISTRAM FUNDOS NO MUNDO VIRTUAL

COMUNIDADES ALTERNATIVAS ADMINISTRAM FUNDOS NO MUNDO VIRTUAL

Organizações Autônomas Descentralizadas prometem mais segurança no registro de documentos e na gestão de bens, mas ainda geram incertezas.

Por: Michel Alecrim

Foi-se o tempo em que a oficialização e o funcionamento de uma organização exigiam registro de contrato em cartório. A tecnologia está permitindo o surgimento de comunidades com diversas finalidades cujos estatutos e transações são gravados totalmente na forma digital. São as chamadas Organizações Autônomas Descentralizadas (DAOs, na sigla em inglês). Além da base tecnológica, esses grupos se caracterizam pela estrutura hierárquica menos rígida ou total falta de níveis de poder e até dispensam a figura de um diretor-presidente ou CEO.

 

Essas comunidades surgiram em razão da necessidade de garantir mais segurança aos dados (documentos ou bens digitais). A vantagem com relação às tradicionais papeladas é que são baseadas em informações registradas igualmente em todos os computadores dos membros, seguindo o modelo da tecnologia blockchain. Por ter validação em cadeia, uma invasão isolada não destrói documentos protegidos. Há também mais transparência e democratização nas decisões. O modelo tem sido usado principalmente para transações de bens ou moedas digitais, mas a tendência é que seja viável também para operações no mundo físico.

 

Um exemplo de DAO que não só se firmou como ganhou a atenção do venture capital é a Fingerprints. Fundada em 2021 por brasileiros, funciona como uma galeria de arte digital. A primeira coleção lançada por eles foi uma série de arte generativa intitulada “Autoglyphs”, da Lava Labs. As imagens são únicas, mas derivam de um mesmo algoritmo-base. A organização já tem mais de 250 membros, entre artistas digitais, colecionadores e investidores.

 

SMART CONTRACTS

 

Essa revolução nos negócios está sendo possível em grande parte em virtude do nascimento da Etherium, em 2015. Segundo Gabriel Aleixo, especialista em blockchain e criptomoedas, esse foi um marco importante que permitiu o surgimento dos smart contracts, que estabelecem não só as regras de governança das organizações, como o papel de cada membro, as tarefas a serem executadas e a participação de cada um nos resultados. São documentos teoricamente invioláveis, e as regras de transparência garantem que as decisões não sejam tomadas sem a anuência dos participantes.

 

“Da mesma maneira que o blockchain garante que uma pessoa não gaste bitcoins de outra, também as organizações descentralizadas impedem que um membro vote no lugar do outro, por exemplo. É evidente que uma empresa tradicional, que lida com o mundo físico, não tem como converter todas as atividades em digitais, mas já é possível substituir etapas de alguns negócios por blockchain”, explica Aleixo. Já há milhares de DAOs pelo mundo, que dificilmente se restringem a fronteiras de países. Apesar da lógica descentralizada, algumas procuram ter uma cara mais nacionalista, como a Bankless Brasil, que se autointitula a primeira totalmente brasileira.

 

A comunidade segue princípios defendidos por um movimento que nasceu nos Estados Unidos com o objetivo de tornar um bilhão de pessoas livres dos bancos. No país, a organização difunde educação financeira e prega a autonomia total do sistema financeiro por parte dos adeptos.

 

DESCONFIANÇA

 

Para a advogada Angelica Carlini, há de fato nas DAOs uma forte vertente de revolta ou raiva, tendo em vista a crise de credibilidade vivida pelo sistema financeiro, após a crise internacional de 2008. Por isso, a ênfase dada por essas iniciativas à validação dos dados e ao combate às fraudes, bem como à transparência e a descentralização das decisões.

 

O avanço tecnológico que permite cada vez mais capacidade de processamento e armazenamento de dados aos computadores é um fator que permitiu essa inovação. Mas o fato de os participantes das organizações manterem-se anônimos é uma questão que ainda gera desconfiança, segundo ela. “Uma questão primordial, que tem preocupado os bancos centrais e as autoridades no mundo todo, é como regular essa prática.

 

Como criar regras para essas pessoas que não querem aparecer? Algo semelhante ocorreu com as contas numeradas da Suíça, que tiveram que mudar depois dos atentados de 11 de setembro de 2001”, explica Carlini. Além da possibilidade de parte, ainda que pequena, dessas organizações estar encobrindo atividades criminosas, o risco de fraude ainda existe. São potenciais prejuízos que o sistema jurídico ainda não está preparado para investigar nem julgar. Por isso, já se discute, principalmente na Europa, a criação de um “direito de blockchain”, ao mesmo tempo em que bancos centrais estudam criar suas moedas digitais. “Esse é um sinal de que essa não é uma modinha.

 

Veio para ficar! Possivelmente, esses contratos vão requerer seguro no futuro. Mas as seguradoras só vão garantir operações depois de muito estudo e sandboxes, o que pode demorar anos”, afirma a advogada. A proliferação rápida desse modelo e a rapidez com que a tecnologia avança dificultam a regulação, o que motiva muitos a defenderem a autorregulação. A criação de leis tende a ser cada vez mais discutida, e é o primeiro passo para a oferta de seguros para os contratos e operações com as DAOS. “Por mais que falemos de tecnologias descentralizadas, o risco das operações virtuais está ficando muito centralizado. Em uma única wallet, é possível ter dinheiro, assinatura digital e várias outras coisas. Isso acaba sendo uma oportunidade grande para os seguros devido ao risco”, avalia Aleixo.