INFLAÇÃO VERDE: ADESÃO AOS PRINCÍPIOS ASG PRESSIONA PREÇOS
Uma das áreas mais impactadas pelo fenômeno é a de energia, seguida pelo setor bancário e pela indústria automobilística. Por: Fernanda Thurler
Em todo o mundo, o combate às mudanças climáticas e a adoção de medidas mitigatórias vêm ganhando força e urgência por meio das ações governamentais para descarbonização da economia. Esse processo, apontam especialistas, tem gerado um novo fenômeno: a inflação verde. Uma das áreas mais importantes é a de energia e, por isso, tem sido uma das mais impactadas pelo fenômeno, como também o setor bancário e a indústria automobilística. Não obstante, esses mesmos especialistas são os primeiros a advertir que nenhuma alta de preços relacionada à inflação verde se equivalerá ao mesmo nível do impacto econômico projetado, caso nada seja feito para evitar ou amenizar as mudanças climáticas. O consenso é que nem mesmo o Brasil conseguirá evitar esse movimento de alta nos preços, independentemente de ter uma matriz elétrica mais limpa que a média mundial.
O coordenador do portfólio de economia de baixo carbono do Instituto Clima e Sociedade, Gustavo Pinheiro, avalia que os efeitos seriam menores se a transição fosse feita de forma gradual, mas adverte que, ao contrário do que ocorre em outros países, as iniciativas não devem gerar pressão inflacionária no Brasil. Sua análise é de que o processo de recuperação da pandemia (especialmente sob o aspecto econômico) e as recentes tensões no campo geopolítico têm maior impacto nos preços do que a transição para uma economia de carbono zero.
“No Brasil, a inflação alcançou dois dígitos em 12 meses, alimentada pela alta nos preços dos bens industriais, reforçada por uma inflação de serviços e pressões de alimentos, combustíveis e energia elétrica”, diz ele, argumentando que os índices de inflação refletem a retomada da economia, os gargalos nas cadeias produtivas, a desvalorização do real, os aumentos dos preços das commodities e as condições climáticas desfavoráveis. Segundo ele, não há evidências de que a descarbonização da economia global seja o principal fator da inflação global.
“O aumento dos preços vem sendo alimentado principalmente por desarranjos nas cadeias logísticas, gargalos e desequilíbrios decorrentes da retomada da pandemia e pelas tensões geopolíticas da Guerra Fria 2.0”, pondera. Pinheiro diz que, passados 48 anos desde o primeiro choque do petróleo, falar da inflação verde na cobertura econômica tem se tornado um mantra. “A hipótese aventada por analistas econômicos é de que a transição para uma economia de baixo carbono deprimiu o investimento em combustíveis fósseis desde a assinatura do Acordo de Paris (em dezembro de 2015) e reduziu a oferta de óleo e gás. Ao mesmo tempo, a retomada da economia, após o choque causado pela Covid-19, ampliou fortemente a demanda e pressionou os preços da energia”, avalia Pinheiro.
CRISES GLOBAIS
Levantamento da Agência Internacional de Energia (AIE) demonstra a drástica queda do investimento na produção de petróleo e gás: de US$ 779 bilhões em 2014 para US$ 328 bilhões em 2020. Mas, de acordo com o consultor, não existe uma única crise global de energia. “Há crises distintas, em várias partes do planeta. Diferentemente das crises do petróleo da década de 1970, as causas não estão relacionadas à restrição sistemática de oferta de óleo e gás”, argumenta Gustavo Pinheiro. Na sua opinião, o problema é que, se contribuíram para reduzir o investimento em petróleo e gás, as promessas de um futuro de baixas emissões de gases de efeito estufa ainda não se traduziram em aumentos nos investimentos em projetos de energia limpa na magnitude necessária.
“O setor de energias renováveis não tem enfrentado escassez de recursos, e as emissões de dívida sustentável atingiram um recorde de US$ 600 bilhões em 2020. Mas os fluxos financeiros cresceram mais rapidamente do que as despesas de capital em energia renovável”, afirma Pinheiro. Estudos da AIE apontam para uma carência de projetos de energia limpa de alta qualidade. E, segundo Pinheiro, a questão é “agravada por canais inadequados para orientar os fundos disponíveis na direção certa e pela falta de intermediários capazes de combinar o capital excedente com as necessidades das empresas e dos consumidores”.
O coordenador do Instituto Clima argumenta ainda que, se o Brasil tivesse dado início ao processo de transição para economia de baixo carbono há mais tempo, hoje os impactos econômicos e sociais seriam menores. “Em 2006, saiu um relatório que mostrava os custos da ação e da inércia climática. O documento mostrou que postergar tornaria o processo mais caro, e está de fato se tornando.”
De todo modo, ele considera que a descarbonização pode tornar a economia brasileira mais competitiva em relação a outras economias relevantes. “É uma oportunidade de redução de custos de energia, pois temos oferta abundante de geração eólica, solar e de biomassa que são mais baratas do que as térmicas que utilizam combustíveis fósseis. Além disso, temos os menores custos de abatimento de emissão de gases de efeito estufa”, conclui Gustavo Pinheiro.
RELATÓRIO BC
Desde o fim do ano passado, o Brasil vem passando por sucessivos desastres climáticos, como chuvas e geadas, que encareceram alimentos, e mais recentemente a crise hídrica, que elevou o custo da energia elétrica. Com isso, a curva da chamada inflação verde está em ascendência. O tema entrou na pauta de discussões do Banco Central com o lançamento, no final de 2020, da Agenda BC# Sustentabilidade: Relatório de Riscos e Oportunidades Sociais, Ambientais e Climáticas.
A partir de então, o presidente da autarquia, Roberto Campos Neto, tem enfatizado que choques ambientais e climáticos podem afetar a taxa de inflação e que isso pode ser um desafio no controle de preços, não só no Brasil, mas em diversos países. Em setembro do ano passado, o BC divulgou sua agenda de sustentabilidade institucional, com uma série de medidas a serem implementadas a curto, médio e longo prazos. Dentro dessas ações, foram lançadas normas de ESG (sigla em inglês para boas práticas ambientais, sociais e de governança) para instituições financeiras. Entre outras, a que exige a inclusão de mudanças climáticas no gerenciamento de riscos dos bancos a partir de julho deste ano. Com isso, o BC passou a exigir que os bancos incorporem potenciais perdas com choques climáticos no cálculo de riscos, o que afeta análises para concessão de crédito.
O documento cita condições climáticas extremas, incluindo seca, inundação, enchente, tempestade, ciclone, geada e incêndio florestal, elencando ainda alterações ambientais permanentes, como aumento do nível do mar, escassez de recursos naturais, desertificação e mudança no padrão pluvial ou de temperatura. De acordo com o diretor de Sustentabilidade e Cidadania Financeira da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Amaury Oliva, as medidas anunciadas pelo BC reiteram a importância dos princípios ESG para o setor bancário, que está preparado para seguir as novas regras.
“O gerenciamento de risco com componentes climáticos não é algo novo para as instituições. Esse é um tema que o setor bancário já vem discutindo há algum tempo, tanto os bancos individualmente, como a Febraban, no âmbito da Network for Greening the Financial System (NGFS), do Financial Stability Board (FSB) e do Basel Committee on Banking Supervision”, afirma Oliva. Segundo ele, com esse objetivo foi desenvolvida uma série de ferramentas para avaliação do risco climático da carteira de crédito dos bancos. “E temos um modelo de autorregulamentação bancária que tem um eixo voltado especificamente para a questão socioambiental e, desde 2020, estamos revendo todas as regras para adequá-las à nova regulação”, afirma Amaury Oliva.
“A agenda ESG é uma demanda da sociedade: os consumidores brasileiros estão cada vez mais atentos ao impacto socioambiental e consideram esse compromisso importante para a avaliação de uma empresa”. Na avaliação do ex-diretor de Política Monetária do Banco Central, Reinaldo Le Grazie, as mudanças climáticas colocam um desafio sem precedentes para o sistema financeiro. “Sobretudo com relação ao difícil equilíbrio entre a regulação prudencial e a eficiência na atuação das instituições financeiras para a transição das empresas em direção a fontes de energia limpa”.
Le Grazie pondera que, diferentemente de outros riscos, como os operacionais, de crédito, de mercado e de liquidez, “os impactos das mudanças climáticas e a materialização da combinação de riscos climáticos físicos e de transição poderão trazer impactos substanciais e até mesmo desestabilizar o sistema financeiro, e o debate sobre os impactos financeiros e monetários de tais riscos ainda é relativamente incipiente, comparado a outros riscos”.
Desse modo, continua Grazie, em linha com as diretrizes de gerenciamento de riscos climáticos recentemente emitidas pelo Banco Central, “as funções de supervisão e enforcement de tais diretrizes pelas instituições financeiras deverão ser prioritárias na pauta do regulador financeiro brasileiro nos próximos anos, o qual deverá atuar em coordenação com outros órgãos do Governo para que haja uma visão integrada e holística da questão.”
ANFAVEA
Mais de R$ 150 bilhões precisarão ser investidos nos próximos 15 anos em tecnologia e infraestrutura pela cadeia automotiva, pelos produtores de combustíveis/energia e pelo Poder Público. A estimativa consta de estudo realizado pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) em parceria com o Boston Consulting Group (BCG), apontando cenários e desafios do Brasil no caminho da descarbonização do setor automotivo.
“Esforços para reduzir a emissão de gases de efeito estufa já estão na agenda da indústria automobilística global, e o Brasil precisa se integrar a essa realidade”, afirma o presidente da entidade, Luiz Carlos Moraes. “A Anfavea lidera esse debate fundamental e inadiável, pois a indústria automotiva precisa saber como direcionar seus investimentos para as próximas gerações de veículos e para inserir o Brasil nas estratégias globais de motorização com foco total na descarbonização”, acrescentou.
No documento “O Caminho da Descarbonização do Setor Automotivo”, a Anfavea apresenta três cenários para o futuro da motorização veicular, considerando a realidade brasileira. Dependendo do cenário, veículos leves eletrificados (que hoje representam 2% desse nicho de mercado) responderão por 12% a 22% do mix de vendas, em 2030, no País, e de 32% a 62%, em 2035. Veículos pesados com novas tecnologias serão de 10% a 26%, em 2030, e de 14% a 32%, em 2035. Motores flex e a diesel ainda serão maioria na frota em 2035, o que aumenta a importância dos biocombustíveis para reduzir emissões de CO2, aponta o estudo. Só veículos zero km “mais limpos” não bastarão para reduzir radicalmente as emissões. “Políticas de inspeção veicular e renovação de frota são mandatária”, afirma Moraes.