O AVANÇO DAS REFORMAS ESTRUTURAIS EM UM ANO DE INCERTEZAS

O AVANÇO DAS REFORMAS ESTRUTURAIS EM UM ANO DE INCERTEZAS

O ano chegou em ambiente ainda incerto, mesmo que analistas do Banco Central mantenham a estimativa de crescimento da economia doméstica próximo a 3,5%.

Por: Chico Santos

Após seis anos (2014 a 2019) de desempenho econômico pífio, incluindo duas recessões consecutivas, em 2015 e 2016, que roubaram da sociedade cerca de 7% de sua riqueza, o Brasil experimentou em 2020 novo impacto recessivo agudo, na casa dos 4%, dessa vez decorrente da pandemia da Covid-19 que completa um ano no dia 11 de março sem sinais claros de arrefecimento, em que pese a extraordinária rapidez da ciência em sintetizar vacinas contra o vírus. Infelizmente, a vacinação avança – no Brasil e no mundo – em ritmo muito aquém do desejável para restabelecer, nas populações e agentes econômicos, a confiança necessária para uma retomada segura das atividades.

 

O ano de 2021 chegou em ambiente ainda de forte incerteza, mesmo que o conjunto dos analistas consultados semanalmente pelo Banco Central do Brasil (BCB), por meio do relatório Focus, venha mantendo uma estimativa de crescimento da economia doméstica próximo a 3,5%. Se confirmado, o número será ainda insuficiente para compensar o tombo de 2020. A incerteza interna não difere muito do ambiente internacional, marcado pela permanência forte da pandemia, freando os esforços de recuperação da maior parte das economias.

 

A troca de comando na nação mais rica e poderosa do planeta, com o democrata Joe Biden substituindo o republicano Donald Trump, deverá ter consequências no comércio internacional, podendo impactar as trocas brasileiras. Em 2020, mesmo encolhendo nos dois sentidos, a balança do País teve as exportações beneficiadas pela desvalorização do real e, especialmente, pela demanda chinesa que se acelerou antes da global, provocando um novo boom de commodities.

 

Do superávit comercial brasileiro de US$ 51 bilhões, 7% maior do que o do ano anterior, a China foi responsável por mais de 70%, ou US$ 35,4 bilhões. Como as peças do tabuleiro desse comércio mundial vão se mover e como o Brasil se encaixará nesses movimentos é outro ponto de incertezas a ser considerado.

 

REFORMAS ESTRUTURAIS

 

Foi esse cenário de indefinição que emergiu das questões propostas pela Revista de Seguros a alguns importantes observadores da realidade brasileira, buscando contribuir para o debate e para a tomada de decisões dos agentes econômicos, especialmente do mercado segurador.

 

Nele, destacou-se a premente necessidade de se acelerar as reformas estruturais para pavimentar o futuro dessa provável retomada conjuntural deste ano, ainda que elas não devam ser encaradas como panaceia salvadora, como alertou o economista Daniel Veloso Couri, Diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal. “Não se discute a necessidade de reformas estruturais, como incansavelmente tem sido propagado pela equipe econômica. De fato, sem elas nossa capacidade de crescimento no longo prazo fica limitada.

 

Com elas, abre-se a possibilidade de corrigirmos distorções históricas, como no caso do sistema tributário e do serviço público. Mesmo nesses casos, não se sabe o resultado, pois a qualidade importa e há boas e más propostas na mesa”, ponderou o economista do IFI. Segundo a avaliação de Couri, este promete ser mais um ano de muita incerteza, que ele em parte atribui à pandemia da Covid-19 e seus efeitos sobre a economia brasileira, mas não somente: “Parte da incerteza nasce do próprio Governo, que não parece capaz de comunicar – e levar adiante – uma agenda clara para o País”, ressalta. A análise dele busca demarcar claramente o que se pode esperar das reformas e o que precisa de soluções mais imediatas.

 

“Em qualquer cenário, as reformas não resolveriam um problema mais premente, que é a crise gerada pela pandemia. No plano fiscal, a incerteza se manifesta, por exemplo, na discussão sobre a prorrogação do auxílio emergencial”. Couri argumenta que, desde o ano passado, parecia claro que o benefício não poderia ficar restrito a 2020, pois as circunstâncias que levaram à sua criação em abril de 2020 ainda estariam presentes na virada do ano.

 

Ele ainda afirma: “O Governo agarrou-se à ideia de que o decreto de calamidade, e a consequente flexibilização de regras fiscais, não poderia ultrapassar 31 de dezembro”. Para o analista, ”é no mínimo estranho haver mais certeza quanto ao fim da vigência de um decreto de calamidade do que quanto ao fim da calamidade, em si”, ainda que reconheça a lógica do raciocínio: “A preocupação era mostrar que o regime extraordinário, que permitiu que gastássemos 7,1% do PIB no combate à pandemia e aumentássemos nosso endividamento em 15 pontos percentuais do PIB, não se conservaria por muito tempo”, estando implícita alguma tentativa de mostrar compromisso com o equilíbrio fiscal. “Faltou combinar com o vírus.

 

 

O decreto se foi e ficaram a calamidade e a necessidade de observar regras fiscais mais restritivas”. Couri lembra que, em 2020, a regra de ouro e a meta de resultado primário estavam suspensas (pelo decreto de calamidade) e o teto foi respeitado utilizando-se os créditos extraordinários como exceção à regra. O problema, segundo ele, é que em 2021, pelo menos por enquanto, estão todas (as regras fiscais) valendo novamente e, para recriar o auxílio nesse contexto, seria necessário rever gastos ineficientes ou menos urgentes, como reajustes salariais, contratações e um ou outro investimento. “Ainda não se avançou concretamente nesse sentido. Pelo contrário, na mesma semana em que se discutiu a prorrogação do auxílio, o Governo renunciou a parte da arrecadação federal com combustíveis fósseis. É uma política fiscal curupira”.

 

O economista argumenta que a alternativa de se viabilizar a permanência do auxílio por meio de crédito extraordinário, ou seja, fora do teto de gastos, para compensação posterior, parece interditada pela interpretação de que o gasto não seria propriamente imprevisível, requisito necessário para abertura de créditos extraordinários. Ou seja, a manutenção de um gasto que é, no nome e na essência, emergencial, acaba ficando refém de um impasse normativo.

 

Couri encerra seu raciocínio com uma explicação filosófica sobre responsabilidade fiscal. Segundo seu ponto de vista, “a responsabilidade fiscal não pressupõe a compensação de toda e qualquer nova despesa, sobretudo se temporária e urgente, mas requer que a gestão fiscal seja transparente quanto aos impactos da medida e como ela seria compatível com uma trajetória sustentável para as contas públicas”. Para o economista do IFI, o Governo falha nesse aspecto e a elevação do prêmio de risco sobre seus papéis e o encurtamento do prazo médio da dívida, em 2020, em alguma medida corroboram essa percepção.

 

DESAFIO FISCAL

 

Ainda que não menosprezem os efeitos de curto prazo derivados da pandemia (e as ações consequentes), os economistas Luiz Roberto Cunha, professor da PUC-Rio, e Alessandra Ribeiro, Diretora de Macroeconomia e Análise Setorial da Tendências Consultoria, colocam as reformas estruturantes na primeira linha das prioridades para que a economia brasileira volte a crescer de forma saudável. Eles enfatizam que sem elas não haverá retomada.

 

“O Brasil vem adiando enfrentar de forma mais abrangente o desafio fiscal. Até o Plano Real, e já se vão quase 30 anos, a inflação elevada mascarava o déficit público, pois os gastos com pessoal ativo e inativo sempre tinham perdas reais com a inflação. A partir de 1994, um aumento da carga tributária, aproximadamente de 25% para 35%, permitiu que o crescimento da relação dívida interna/PIB não fosse acentuado.

 

A partir de 2013, não foi mais possível continuar aumentando a carga tributária e a alternativa foi aumentar o déficit fiscal e, consequentemente, a relação dívida/PIB, gerando um déficit fiscal grave”, comenta Cunha. Para o economista da PUC-Rio, a sinalização de “basta” na alternativa de aumento da carga veio com as manifestações populares de junho daquele ano, quando o foco foi a péssima qualidade dos serviços públicos fornecidos em troca daquela carga tributária.

 

Para ilustrar sua constatação, Cunha recorreu a um gráfico preparado pelo Banco Mundial que compara a qualidade da educação, saúde, segurança e infraestrutura brasileiras com a do Chile, México, Estados Unidos, China, Rússia e dos países da OCDE em conjunto, relativamente aos gastos públicos. A posição brasileira é sempre periférica.

 

O economista ressalta que o cronograma das reformas estruturantes ganhou tempo com as medidas tomadas a partir de 2016, especialmente o teto dos gastos e a Reforma da Previdência. Ele considera que a partir de agora é inadiável retomar o calendário. “O timing é a urgência do crescimento sustentado para melhorar a distribuição de renda e permitir a manutenção de juros reais baixos”, sentencia.

 

Cunha ressaltou que nas propostas iniciais do Ministro da Economia, Paulo Guedes, as prioridades estavam bem delineadas e iam da redução do tamanho do Estado (Reforma Administrativa) e da sua ineficiência (via privatizações), passando pela PEC Emergencial e chegando à complexa Reforma Tributária que tem desafiado iniciativas ao longo de décadas. A linha de raciocínio da Diretora da Tendências não se distancia substancialmente da traçada pelo economista da PUC-Rio.

 

Como Cunha, Alessandra Ribeiro utilizou um “não” taxativo para responder sobre a hipótese de o Brasil voltar a crescer sem as reformas. “Na situação atual, o País precisa de reformas estruturais para garantir o retorno do crescimento de forma sustentada”, afirmou. Na cesta de prioridades, ela colocou aquelas voltadas para desatar o nó fiscal brasileiro: a PEC Emergencial, a PEC do Pacto Federativo, uma ampla Reforma Tributária e a aceleração dos processos de concessões e de privatizações de serviços e de empresas, tendo como foco não apenas o controle e equilíbrio dos gastos públicos, como a eficiência desses gastos e a qualidade dos serviços prestados.

 

Neste primeiro semestre, Alessandra Ribeiro entende que o País deveria focar a PEC Emergencial e/ou o Pacto Federativo, pelos efeitos fiscais positivos que as duas medidas poderão gerar no curto prazo. A PEC Emergencial, em tramitação desde o final de 2019, permite, entre outras medidas, o corte temporário de gastos fixos, como a redução de até 25% dos salários, e respectivo tempo de jornada dos servidores públicos e o congelamento de concursos. A economista da Tendências destacou a importância da agenda microeconômica, já com avanços concretos, para a retomada do crescimento, citando diretamente o novo marco regulatório do saneamento, a nova Lei do Gás e a nova Lei da Cabotagem, além da agenda modernizadora do Banco Central, como fundamental para aumentar a competição e atrair investimentos.

 

Mas advertiu: “Se não tivermos a estabilidade macroeconômica garantida, reformas microeconômicas terão seus efeitos completamente limitados”. Tanto Alessandra Ribeiro quanto Luiz Roberto Cunha, assim como já havia feito Daniel Couri, do IFI, não relevaram o peso da segunda onda da pandemia da Covid-19 para a retomada da vida normal no País e, consequentemente, para que se possa focar as reformas e obter delas os efeitos desejados. “A segunda onda da Covid e medidas necessárias decorrentes podem afetar negativamente o timing para o avanço no Congresso Nacional das discussões em torno das reformas estruturais”, disse a economista da Tendências.

 

Alessandra Ribeiro destacou que a demora no ritmo da vacinação que vem se observando “limita o ritmo de reação da economia, dadas as necessárias medidas de restrição à mobilidade e o medo da população em relação ao quadro sanitário”. Cunha disse que a atual segunda onda impossibilita o retorno das atividades e aumenta a demanda por uma nova rodada de auxílio, acrescentando estar claro que não há espaço para essa nova rodada sem a concomitante redução de outros gastos. E sintetizou: “A segunda onda aumenta o impasse entre a urgência da transferência de renda e a situação fiscal delicada que deteriora expectativas, contrai investimentos e aumenta os juros futuros”.

 

FRONT EXTERNO

 

A economista Lia Valls Pereira, analista de Comércio Exterior da Fundação Getulio Vargas (FGV), entende que a incerteza é também o sentimento dominante no cenário das trocas internacionais, em que pese um 2020 relativamente bem-sucedido, dadas as condições estabelecidas pela pandemia. “O Brasil perdeu a proatividade no mercado e não está claro o que o Governo pretende, especialmente em relação à agenda climática”, destacou.

 

A ênfase na questão do clima dada pela analista da FGV tem uma urgência clara: a assunção do democrata Joe Biden à Presidência dos Estados Unidos, com o imediato retorno norte-americano ao Acordo de Paris e a sinalização da China, via acordo com a União Europeia, de que o tema entrou definitivamente na sua agenda, alinham os dois gigantes com o que já era a prioridade da Europa, colocando a componente climática como prioridade maior nas decisões comerciais dos três maiores mercados daqui para a frente. “O quadro (em relação à agenda climática mundial) acende uma luz amarela para que o Brasil se adeque.

 

O País precisa voltar a ter uma visão estratégica. Não temos que escolher lados”, advertiu. Sem essa readequação, Lia Valls entende que o quadro de incertezas se agrava, apesar das possibilidades de continuação este ano do quadro favorável às commodities gerado pela retomada da economia chinesa à frente das demais e pelo câmbio desvalorizado teoricamente favorável às exportações de produtos industriais para a América Latina.

 

Questionados sobre os possíveis efeitos para o Brasil da troca de Trump por Biden, Alessandra Ribeiro, da Tendências, e Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio, mostraram visões alinhadas com a análise da especialista da FGV. “O Governo brasileiro deve adotar uma postura pragmática em relação ao novo Presidente norte-americano. Considerando a importância da agenda ambiental no Governo Biden, o Brasil terá que mostrar atitudes concretas sobre o tema e melhorar sua interlocução internacional”, disse Alessandra.

 

“A relação diplomática entre países deve se basear, principalmente, em interesses econômicos, pois, em um mundo globalizado, o comércio internacional é uma das principais fontes de crescimento sustentado”, ponderou Cunha, ressaltando que questões ambientais e de direitos humanos também fazem parte de uma agenda internacional, sendo importante que o entendimento das políticas dos países seja levado em consideração.