O CRÉDITO CARO É O QUE MAIS IMPACTA AS VENDAS DE VEÍCULOS
Não podemos nos contentar em ser um país exportador de matérias-primas, temos de transformá-las em produtos e componentes tanto para o mercado interno como para exportação Por: Vagner Ricardo
Capazes de produzir 4,5 milhões de automóveis por ano, as montadoras brasileiras têm encontrado seguidas barreiras para utilizar a capacidade instalada máxima de suas fábricas no País. Obstáculos como a crise econômica de 2015/2016, a pandemia de 2020, a escassez global de semicondutores na sequência e, agora, os juros altos e as restrições ao crédito levaram a produção a decrescer para os atuais 2,3 milhões de unidades por ano.
Trata-se de um patamar de produção insustentável por tanto tempo, reconhece o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio Lima Leite, lembrando que, em seu melhor momento, a indústria fabricou 3,8 milhões de carros por ano há uma década. Alimentando a esperança de que estava a caminho da emblemática marca de 5 milhões de unidades anuais.
Em entrevista exclusiva à Revista de Seguros, Márcio Leite aponta os caminhos para a retomada do setor. “Para elevar a produção, devemos trabalhar em medidas de curto e longo prazos, tanto no mercado interno quanto nas exportações, atacando problemas como falta de acesso ao crédito, juros elevados, complexidade tributária e burocracia, além dos entraves às exportações”. Confira abaixo a entrevista na íntegra.
Os dados dos últimos anos mostram que as montadoras têm encontrado grandes dificuldades para aumentar as vendas internas em ritmo mais vistoso. Quais são os entraves para a indústria operar com toda sua capacidade instalada?
Márcio Leite — Temos uma capacidade instalada para produzir 4,5 milhões de unidades por ano. Há dez anos, chegamos a produzir 3,8 milhões, com a perspectiva de crescer para perto de 5 milhões. Mas aí veio a crise econômica de 2015/2016, que derrubou o volume de produção e, mais recentemente, a trajetória de recuperação foi interrompida pela pandemia. Hoje, estamos produzindo cerca de 2,3 milhões de veículos, pouco mais da metade da nossa capacidade. É insustentável permanecer nesse nível por tanto tempo. É preciso reverter as atuais condições restritivas de crédito e juros elevados, fazer a tão desejada reforma tributária, que simplifique o atual sistema, reduzindo custos, e definir uma política de Estado voltada para a nova industrialização, que dê previsibilidade para as montadoras e sua extensa cadeia de fornecedores fazerem robustos investimentos, boa parte englobando demandas sociais de novas tecnologias de propulsão ambientalmente responsáveis.
Por que a indústria tem recorrido à redução no ritmo de produção neste ano e por quanto tempo planeja manter a fabricação em banho-maria?
As interrupções na produção de caminhões e ônibus eram, até certo ponto, previsíveis. É normal haver um período mais intenso de compras antes da virada de fases do Proconve(*). A atual fase P8 entrou em vigor em janeiro, colocando os veículos pesados no patamar dos países mais desenvolvidos em termos de controle de emissões. Além do alto custo dessa tecnologia, o segmento de pesados também passa por dificuldades de crédito que dificultam o financiamento. A combinação desses fatores resulta no desaquecimento momentâneo desse segmento. Já para os veículos leves, há uma combinação negativa de oferta, em razão de efeitos residuais da crise dos semicondutores, com um princípio de esfriamento das vendas no varejo, fruto da dificuldade de crédito. Há alguns anos, 70% das vendas de automóveis eram financiadas. Hoje, 67% são à vista, não pelo fato de esse segmento ter crescido, mas porque o consumidor não consegue financiar a compra. Aí está o “X” da questão. É preciso melhorar as condições de crédito para reaquecer o mercado.
A cogitada volta dos carros populares pode dar um novo alento à produção? Quais são os pré-requisitos para isso dar certo?
A Anfavea fez um cálculo corrigindo pela inflação os preços dos populares da época do Governo Itamar Franco. Eles custariam hoje cerca de R$ 80 mil e não teriam nem retrovisor do lado direito, nem cintos de três pontos traseiros ou cintos traseiros de três pontos, muito menos itens eletrônicos de conectividade, airbags e freios ABS. Volto a dizer: para aumentar a produção, devemos trabalhar em medidas de curto e longo prazos, tanto no mercado interno quanto nas exportações, atacando problemas como falta de acesso ao crédito, juros elevados, complexidade tributária e burocracia, além dos entraves às exportações. Hoje, sem dúvida, o crédito caro é o que mais impacta as vendas de veículos.
Como a regionalização da produção de acessórios/autopeças pode ser uma resposta assertiva?
A localização da produção de componentes é fundamental para um projeto nacional de nova industrialização. Sem um setor de fornecimento de autopeças robusto, o setor automotivo não deslancha. E aqui falo desde ferramentaria, que foi muito afetada durante a pandemia, até itens de maior complexidade, como câmbio automático, itens eletrônicos e baterias de carros eletrificados. Não podemos nos contentar em ser um país exportador de matérias-primas, temos de transformá-las em produtos e componentes tanto para o mercado interno como para exportação. Mas, novamente, esses investimentos dependem de uma clara política de industrialização ligada às demandas das novas tecnologias de propulsão.
O carro elétrico parece ter boa acolhida no mercado brasileiro. Quais as consequências desse modelo para o ecossistema da indústria automotiva? Qual a participação esperada das vendas de carro elétrico nos próximos anos e quais os desafios para sua fabricação?
No ano passado, foram emplacadas quase 50 mil unidades de veículos elétricos. Para este ano, são esperados mais de 70 mil emplacamentos, crescimento superior a 40%. Eles ainda representam 3,5% do total de vendas, mas vêm crescendo rapidamente. Mais de 90% são híbridos, boa parte produzidos localmente. Os veículos leves elétricos são quase todos importados, mas já estamos produzindo no Brasil caminhões e ônibus 100% elétricos. Este é um caminho sem volta, que tende a crescer e que demandará grandes investimentos em termos de pontos de carregamento, geração de energia e distribuição. E exigirá grandes adaptações de todo o ecossistema automotivo, como fornecedores de autopeças, oficinas, serviços e até das seguradoras. Mas reforço que, no Brasil, a solução de mobilidade não será apenas elétrica, e sim eclética. Temos uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo e décadas de experiência com o uso de biocombustíveis sustentáveis. A dimensão geográfica do Brasil e as distintas demandas de mobilidade exigem diferentes soluções de propulsão, desde os motores flex e os movidos a gás, a biodiesel e HVO, até os eletrificados híbridos e os elétricos.
Qual sua avaliação a respeito do alinhamento das montadoras às questões ASG?
Nosso setor é referência absoluta em questões ambientais, sociais e de governança. Nossas fábricas geram um forte impacto positivo de desenvolvimento socioeconômico em todas as comunidades em que estão inseridas. Em relação ao ambiente, nosso grande objetivo é a descarbonização, uma imposição global sem volta. Estamos totalmente focados na atração de novos investimentos para a produção local de veículos ambientalmente responsáveis, que passa pela transformação das matérias-primas em componentes e pelo desenvolvimento de fornecedores ligados a novas tecnologias de propulsão, até o uso de novas fontes de energias limpas e de infraestrutura, transmissão e distribuição. Ao mesmo tempo, temos times de pesquisa e desenvolvimento no País trabalhando em soluções com biocombustíveis, que se somam aos esforços de eletrificação para proporcionar uma efetiva redução das emissões de CO2 do poço à roda.
O que o setor espera da conjuntura na gestão do novo Governo e quais os pontos de atenção?
Nossa comunicação está fluindo muito bem neste início de Governo. Continuamos mantendo a nossa agenda normal de contatos com representantes dos Poderes Executivo e Legislativo, na busca de soluções para nossas questões setoriais. Esperamos que o Governo e o Congresso viabilizem rapidamente a reforma tributária, com foco em uma política de Estado para a nova industrialização que permita ao Brasil ocupar posição de relevante player industrial no complexo e competitivo mercado automotivo mundial.
Como estão se comportando as exportações de veículos, tendo em vista o risco de recessão global e de mercados que vêm adotando ações protetivas?
Esse foi o indicador mais positivo da indústria automotiva em 2022. A Anfavea já projetava uma alta de 22%, mas os 480,9 mil veículos exportados no ano representaram um crescimento de 27,8% sobre 2021. O que não deixa de ser surpreendente, dadas as restrições de comércio exterior impostas pela Argentina, nossa maior parceira comercial, em razão de sua crise. Em contrapartida, o sensível crescimento dos embarques para todos os outros mercados latino-americanos, em especial México, Colômbia e Chile, permitiu esse bom resultado no ano. Em valores, as exportações tiveram alta ainda mais significativa, de 37,6%, por conta das vendas significativas de veículos com maior valor agregado, como SUVs, caminhões e ônibus. Para 2023, a expectativa é de ligeira queda de 2,9%, ainda puxada pela Argentina. A Anfavea estima exportação total de 467 mil unidades. O ponto de alerta é a entrada, cada vez maior, de modelos asiáticos nos países vizinhos. Se tivéssemos mais competitividade interna e menores barreiras às exportações, ocuparíamos muito mais espaço nos mercados latino-americanos.
O que os números de produção, venda e estoques acumulados no ano dizem sobre o desempenho anual?
Fechado o balanço do primeiro trimestre, estamos 30 mil unidades abaixo do que deveríamos para cumprir nossa produção projetada de 2,4 milhões de unidades. Mas não faremos uma revisão de projeções antes da metade do ano. Muitas variáveis podem fazer o mercado reagir, e estamos otimistas com o interesse demonstrado pelo Governo Federal em dialogar com o setor automotivo em torno de medidas efetivas para reduzir nossa capacidade ociosa.