POBREZA, DESIGUALDADE E TRABALHO INFANTIL: IMPACTOS DA PANDEMIA

POBREZA, DESIGUALDADE E TRABALHO INFANTIL: IMPACTOS DA PANDEMIA

Brasil e América Latina vêm acumulando impactos socioeconômicos desafiadores, representados pelo aumento da pobreza, do desemprego, da desigualdade e do trabalho infantil.

Por: Chico Santos

A viagem em que o mundo embarcou no dia 11 de março de 2020, quando foi declarada a pandemia da Covid- 19 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ainda não terminou, apesar das esperanças trazidas pelas inúmeras vacinas desenvolvidas em tempo recorde mundo afora. Mas um olhar retrospectivo, especialmente para a realidade brasileira, que não difere muito da latino-americana, mostra um cenário desafiador no terreno do trabalho e da renda. E que só não é pior porque as tecnologias digitais ajudaram a mitigar os problemas para uma parte da população, embora, paradoxalmente, tenham ajudado a agravar a situação dos mais vulneráveis.

 

Para além das mais de 500 mil vidas perdidas, quase 13% dos 3,9 milhões ceifados no mundo até o fechamento desta reportagem, o Brasil e a América Latina vêm acumulando em quase 15 meses da pandemia da Covid-19 impactos socioeconômicos negativos, representados especialmente pelo aumento da pobreza, do desemprego, principalmente entre mulheres, negros e pardos, da desigualdade e do trabalho infantil que vêm sendo constatados em pesquisas regulares ou especiais de organismos dedicados a observar esses indicadores.

 

O IBGE constatou em novembro do ano passado que 19,6% das pessoas haviam recebido rendimento menor do que habitualmente recebiam e, no começo deste ano, a FGV Social cruzou dados das pesquisas Pnad Contínua e Pnad Covid- 19, do mesmo IBGE, para concluir que, no começo deste ano, 12,8% dos brasileiros estavam vivendo com menos de R$ 246 por mês, que é a linha da pobreza extrema. Em números absolutos, eram cerca de 27 milhões de extremamente pobres, aproximadamente as populações dos estados de Minas Gerais e Goiás juntas.

 

A Pnad Contínua referente a dezembro de 2020, a última disponível, mostrava que a vulnerabilidade trazida pela pandemia e a necessidade de isolamento social, única forma de evitar os riscos até que a cobertura vacinal alcance a maioria da população, atingiu a todos, mas especialmente jovens em idade de entrada no mercado de trabalho, mulheres, pretos e pardos. Estes três últimos grupos, segundo os especialistas, refletindo o impacto do isolamento sobre as atividades de serviços, a maioria delas, informais.

 

EFEITO DEVASTADOR

 

Os dados mostram que esses grupos estavam com níveis de ocupação abaixo da metade dos contingentes desses estratos aptos a trabalhar, aprofundando desequilíbrios que já existem historicamente. “O efeito da pandemia sobre o mercado de trabalho, no Brasil e no mundo, tem sido devastador”, resume o analista José Marcio Camargo, Economista-Chefe da Genial Investimentos e com longa experiência no acompanhamento do mercado de trabalho.

 

Camargo ressaltou que o efeito da crise sanitária sobre os trabalhadores informais no Brasil reflete a impossibilidade que a maioria desses profissionais encontra para exercer suas atividades sem a circulação normal de pessoas nas ruas, uma vez que grande parte dessas atividades é exercida de forma presencial. No mercado formal, o trabalho remoto tornou-se uma alternativa disseminada (veja box na pág. 30), amenizando os efeitos perversos da pandemia.

 

No caso das mulheres, o economista lembra que mesmo alguns serviços formais, nos quais a participação feminina é dominante, como o trabalho doméstico e os serviços de cabeleireiro e manicure, exigem o contato presencial para serem exercidos, o que explica o motivo pelo qual as estatísticas estão mostrando a incidência maior da crise sobre elas. A situação brasileira, constatada pelo IBGE e avaliada por Camargo, não é diferente na região da América Latina. Em entrevista por e-mail à “Revista de Seguros”, o Diretor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a América Latina e Caribe, Vinícius Pinheiro, disse que os estudos preliminares da entidade referentes ao ano passado revelaram perdas de 26 milhões de empregos, consequência de uma redução da taxa média de ocupação regional de 57,4% para 51,7% um ano após o início da pandemia.

 

Pinheiro acrescentou que a gravidade maior dessa retração do emprego decorre do fato de que 80%, ou mais de 20 milhões de pessoas, ficaram sem trabalho na região simplesmente porque desistiram de procurar outra ocupação por falta de oportunidade. São os desalentados que, segundo o IBGE, eram 6 milhões somente no Brasil na virada do ano.

 

O dirigente da OIT disse mais: que esse enorme contingente de pessoas que deixou a força de trabalho no ano passado tem forte presença de jovens, o que pode gerar graves consequências para o futuro. “Essa saída da força de trabalho foi uma característica de 2020 e um fenômeno marcante no caso dos jovens, o que poderia ter impacto na estabilidade social e política da região”, afirmou.

 

De acordo com Pinheiro, a perda global de empregos entre jovens de 15 a 24 anos foi de 8,7%, contra 3,7% do restante da população adulta no primeiro ano da crise sanitária. Sobre a questão da igualdade de gênero, o representante da OIT disse que, em um ano, a América Latina regrediu uma década, especialmente porque crescentemente as mulheres viram-se em dificuldades para conciliar trabalho remunerado e obrigações familiares em ambiente de confinamento.

 

Segundo ele, a taxa de participação das mulheres na força de trabalho da região em 2020 caiu 5,4 pontos percentuais, descendo a 46,4%. Em números absolutos, 12 milhões de mulheres a menos no mercado de trabalho.

 

AUMENTO DA POBREZA

 

A resultante de todos esses números é a pobreza. Dados da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) no seu “Panorama Social da América Latina” referente a 2020 mostram que o índice de pobreza na região alcançou 33,7%, crescendo mais de 10% em relação aos 30,5% de 2019 e retornando ao nível de 2008. Já o índice de pobreza extrema passou de 11,3% para 12,5. Em números absolutos, significa que 2020 terminou com 209 milhões de pobres e 78 milhões de extremamente pobres na região. Pinheiro ressaltou na entrevista que, desafortunadamente, a pandemia se abateu sobre a América Latina durante um ciclo de crescimento fraco, desfavorável à geração de bons empregos e propício à insegurança e à baixa remuneração associadas à informalidade.

 

“A região começou 2021 com uma perspectiva sombria e complexa para o mundo do trabalho, agravada por novas ondas de contaminação e processos lentos de vacinação. Isso torna ainda mais incertas as perspectivas de recuperação dos mercados de trabalho”, lamentou. Até agora, o resultado trazido pelos números conhecidos foi a ampliação da desigualdade, na região e no Brasil, especificamente, como constata Camargo. No País, segundo ele, a política de renda emergencial que, de acordo com o IBGE, alcançou na primeira fase 41% dos domicílios brasileiros, com um rendimento médio de R$ 558, camuflou em um primeiro momento a precariedade do mercado de trabalho informal, cobrindo o espaço de renda deixado pela impossibilidade de trabalhar.

 

O que se observou na progressiva retomada das atividades constatada a partir do segundo semestre de 2020, ainda de acordo com a análise de Camargo, foi que essa retomada se concentrou basicamente no mercado formal, protegido pelo acesso à tecnologia do teletrabalho que alcança grande parte das categorias resguardadas pela formalidade. Sem questionar as vantagens proporcionadas pelo avanço tecnológico, o economista explica: “Essa realidade traz um problema sério de desigualdade, com risco de aprofundar o fosso entre os mais ricos e os mais pobres.”

 

De acordo com a Pnad Covid, do IBGE, no final de setembro do ano passado havia 7,9 milhões de pessoas trabalhando remotamente no País; desse total, 0,3% eram trabalhadores com o ensino fundamental incompleto, e 27,1% desse contingente era formado por pessoas com formação superior ou pós-graduação. Adriana Beringuy, Gerente da Pnad Contínua do IBGE, ressalta o tamanho da tragédia que se revelou ao final de 2020 no Brasil: oito milhões a menos de pessoas ocupadas do que em 2019, o maior contingente da série histórica da pesquisa do órgão.

 

“O desemprego não ocorreu de forma neutra, foi mais sentido por mulheres, jovens, pretos e pardos. No caso dos jovens, o drama foi além da faixa de 18 a 24 anos, atingindo também os de 25 a 39 anos, que chegaram ao final de 2020 com uma taxa de desemprego de 13,9%, contra 9% da faixa entre 40 e 59 anos. Sobre o impacto desigual da perda de ocupação por cor ou raça, Adriana Beringuy disse que se trata de uma associação perversa entre o quadro estrutural e o conjuntural. Ou seja, para aquelas faixas da população que normalmente já têm maior dificuldade de acesso ao mercado, a situação conjuntural potencializa o quadro que já é endêmico, quando vem a crise. Ela explicou ainda que, em relação aos 6 milhões de desalentados que o IBGE mapeou entre dezembro do ano passado e fevereiro deste ano, ocorreu fenômeno semelhante. “O desalento teve uma característica mais estrutural, obviamente potencializada na crise”, disse.

 

Segundo Adriana Beringuy, o resultado foi que a falta de trabalho aprofundada pela crise da pandemia estimulou ainda mais os estratos sociais ordinariamente atingidos pelo fenômeno, como as pessoas muito jovens ou as de idade mais avançada, a desistirem da procura por ocupação.

 

DILEMA FISCAL X SOCIAL

 

O economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, vem se debruçando sobre o estudo de como conciliar a necessidade de se ter políticas sociais de renda, especialmente neste período de pandemia, diante do quadro de degradação exposto até agora neste texto, e as limitações fiscais do Estado brasileiro. Seus prognósticos não são nada otimistas.

 

Autor, em parceria com outros quatro pesquisadores, de um estudo divulgado em setembro do ano passado, propondo uma completa reformulação dos programas de transferência de renda no Brasil, de modo a lhes dar mais consistência com viabilidade fiscal, Mendes também divulgou um estudo propondo medidas fiscais para economizar R$ 46,2 bilhões destinados a financiar a continuidade do auxílio emergencial. A proposta, segundo ele, ficou prejudicada com a aprovação do Orçamento Federal de 2021, no final de março, focado no financiamento de emendas parlamentares.

 

“A solução foi tirar recursos da máquina pública e de investimentos para financiar emendas parlamentares. Esse é o padrão de escolha pública do Brasil”, lamentou. Para Mendes, a primeira fase do auxílio emergencial, em 2020, “era o que restava fazer nas circunstâncias”, com a economia travada pelo isolamento social imposto pela pandemia. Na sequência, segundo ele, vieram os problemas, evidenciados em uma disputa política entre o Congresso Nacional e o Governo.

 

“Começou-se a discutir a renovação do auxílio e o Governo não fez nada, apostando no fim da pandemia”, disse, defendendo que ali deveria ter sido levado adiante um redesenho das políticas sociais de modo a dar mais consistência aos programas existentes. Resumidamente, a proposta seria assegurar uma renda mínima para aqueles que não conseguem sair da pobreza e trabalhar com uma espécie de seguro, tipo FGTS, para amparar aqueles que têm renda, mas são altamente vulneráveis, basicamente, os trabalhadores informais.

 

A proposta completa, derivada daquele estudo de setembro passado, foi transformada em projeto de lei pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). Como nada foi adiante, com o Governo optando finalmente por se desdobrar para pagar um novo e inevitável auxílio de quatro meses, Mendes disse que está se desenhando um roteiro sem solução para a pobreza, com a inflação em alta e queda da perspectiva de crescimento. Realçando que o Bolsa Família é um programa exitoso, Mendes afirma: “A gente sabe fazer, precisa é melhorar”, ressaltando que, para isso, é essencial aperfeiçoar o Cadastro Único de modo a permitir focar os benefícios para os estratos sociais compatíveis.

 

 

TRABALHO INFANTIL

 

Proibido pela Constituição Federal, artigo 7º parágrafo XXXIII, até o limite dos 16 anos, exceto na condição de aprendiz a partir dos 14 anos, o trabalho infantil vinha em declínio no Brasil, tendo caído de 5,3% em 2016 para 4,6% em 2019, segundo o IBGE, mas com a pandemia há sinais de recrudescimento, configurando-se em mais um dos efeitos perversos da crise sanitária. O Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, detectou uma tendência expressiva nos primeiros meses da pandemia, por meio de uma pesquisa feita de abril a junho do ano passado em São Paulo.

 

O aumento apurado foi de 26%. Luiza Teixeira, especialista em proteção à criança do Unicef no Brasil, disse que, embora os dados disponíveis sejam somente de São Paulo, é sabido que as causas que geraram esse recrudescimento no Estado mais populoso do País estão presentes em outras regiões. “Os dados mostram que, embora crianças e adolescentes não sejam os mais diretamente impactados pela pandemia [em termos de saúde], sã o, certamente, o grupo que mais sofre os impactos secundários da doença”, afirmou.

 

De acordo com Teixeira, os fatores que aumentaram o risco do trabalho infantil na pandemia começaram com a perda de renda familiar e se ampliaram com o fechamento das escolas. “Crianças e adolescentes passaram a ser mais envolvidos em atividades domésticas ou mesmo em outras atividades para complementar a renda familiar”, acrescentou, explicando que a dificuldade de acesso a aulas remotas aprofundou a perda de vínculo com as escolas.

 

Dessa forma, o gap na escolaridade imposto pelas “férias” compulsórias, por si só um dos efeitos mais perversos para a geração que está enfrentando a pandemia em idade escolar, tem como agravante o risco desse retrocesso laboral. Questionada se esse recrudescimento deve ser visto como transitório, a analista do Unicef foi reticente. “Assim como outros tipos de violência contra a criança e adolescentes, o trabalho infantil é complexo e multifacetado, com impactos severos para eles e suas famílias. Para mudá-lo, é necessário, primeiro, promover uma mudança de cultura para quebrar a normalização e a glorificação do trabalho infantil”.

 

A especialista acrescentou que é preciso “promover a busca ativa das famílias vulneráveis, que sofreram redução ou perda da renda na pandemia, para que elas sigam sendo inseridas nos programas de assistência social”. Paralelamente, Teixeira propôs outra busca ativa das crianças e adolescentes que já estavam fora da escola, ou que se evadiram durante a pandemia, assegurando acompanhamento para que sejam rematriculados e apoiados e permaneçam estudando.