REDUÇÃO DAS CHUVAS REPRESENTA RISCOS PARA A SEGURANÇA HÍDRICA

REDUÇÃO DAS CHUVAS REPRESENTA RISCOS PARA A SEGURANÇA HÍDRICA

Para garantir abastecimento aos brasileiros até 2035, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico aponta a necessidade de obras de infraestrutura e projetos no valor de R$ 27,5 bilhões.

Por: Francisco Luiz Noel

Oprivilégio de dispor de 12% de toda a água do planeta não livra o Brasil do risco de viver situações de escassez em tempo de estiagem, que se estende do outono à primavera. Agravada pelas mudanças climáticas, a redução das chuvas volta a deixar em alerta autoridades ambientais, gestores do abastecimento público, empresas e consumidores. Passados sete anos da crise de abastecimento que afetou São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades do Sudeste, assim como do Nordeste, o tema da segurança hídrica permanece na agenda nacional, apesar das diversas medidas que vêm sendo adotadas pelo País para garantir a oferta e racionalizar a demanda.

 

O panorama da quantidade, qualidade, uso e gestão da água é reportado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) no Relatório Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil 2020. Segundo o trabalho, base para avaliação do Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) 2006-2021 e formulação do plano 2022- 2040, o País possui 233 comitês de bacias hidrográficas, tendo arrecadado R$ 3,4 bilhões com a cobrança pela água de rios federais usada por empresas desde a vigência da Política Nacional de Recursos Hídricos, de 1997. Nesses rios, 167,7 mil usuários estavam autorizados a captar até 4.330 metros cúbicos por segundo (m3/s) em 2019.

 

Da demanda total de 2.083 m3/s de água em 2019, de acordo com o relatório da ANA, a irrigação utilizou 1.038 m3/s (49,8%); o abastecimento humano nas cidades, 506 m3/s (24,3%); e a indústria, 202 m3/s (9,7%). A esses usos, que somaram 83,8%, juntaram-se os da pecuária e outras criações, 175 m3/s (8,4%); termelétricas, 93 m3/s (4,5%); mineração, 36 m3/s (1,7%); e abastecimento rural, 34 m3/s (1,6%). A Região Sudeste lidera o consumo de água no abastecimento urbano, na indústria e na irrigação (que também é expressivo no Sul) ao passo que o Nordeste se caracteriza pelo descompasso entre a necessidade e a disponibilidade do insumo essencial.

 

As secas e estiagens afetaram 22 milhões de pessoas em 2019, das quais 20,7 milhões (94%) vivem no Nordeste, registra o relatório da ANA. Os problemas de segurança hídrica estendem-se, porém, a diversas áreas espalhadas pelo País: 60,9 milhões de brasileiros moram em cidades com risco de escassez de água. Diante da situação, a agência vem autorizando iniciativas de realocação de recursos hídricos, editando regulações, fixando regras de operação de reservatórios e fazendo campanhas de fiscalização. Para garantir a segurança do abastecimento até 2035, a ANA prevê a necessidade de obras de infraestrutura e projetos no valor de R$ 27,5 bilhões.

 

DESAFIOS DA POLUIÇÃO

 

A agência considera positivo o saldo do esforço generalizado, público e privado, para tornar mais racional o trato da água desde a crise hídrica de 2014, que escancarou o problema em cidades do Sudeste e Nordeste. “Por reconhecer que situações de escassez poderão vir a ocorrer de forma mais frequente no futuro, dependendo das condições e da variabilidade do clima, as instituições públicas do setor têm se esforçado para refinar suas avaliações sobre as condições de segurança hídrica, e as empresas vêm buscando ampliar essa segurança em seus sistemas produtivos”, avalia o Superintendente adjunto de Planejamento de Recursos Hídricos da ANA, Flávio Tröger.

 

Além de iniciativas para regular a operação de hidrelétricas em bacias como a do Rio São Francisco, Flavio Tröger aponta medidas como o aprimoramento de controles da demanda por água e a redução de perdas nos sistemas de abastecimento de companhias e serviços municipais. Na indústria, ele destaca boas práticas de reúso de água na produção e outras atividades; e na agricultura, a adoção crescente de técnicas de irrigação mais eficientes, como a realizada por pivô central, sistema de torres giratórias que pulverizam água ao redor de forma mais econômica.

 

Ponto crítico da situação do abastecimento no País é, porém, o impacto das deficiências de saneamento básico sobre o estado de mananciais em regiões urbanas. “O principal desafio na gestão dos recursos hídricos é o controle da poluição, principalmente no que se refere ao lançamento de efluentes sem o devido tratamento, que podem comprometer as condições de oferta hídrica em determinadas bacias ou mesmo criar conflitos entre determinados usos, em razão da qualidade da água”, alerta o Superintendente adjunto de Planejamento de Recursos Hídricos da ANA.

 

Nas cidades brasileiras, 38,4% da população não dispõe da cobertura de esgotamento sanitário, segundo diagnóstico da Secretaria Nacional de Saneamento, do Ministério do Desenvolvimento Regional, com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) referentes a 2019. Do esgoto coletado, somente 49% são tratados e 21,5% desse volume não tem o tratamento apropriado.

 

O destino desses efluentes são os rios e outros corpos d’água, inviabilizando a captação para abastecimento humano. Outra fonte poluidora são os lixões a céu aberto: 1,1 mil, segundo o diagnóstico. No caso do esgoto, o Ministério do Desenvolvimento Regional estima que a universalização do serviço até 2035 exige investimentos de R$ 149,5 bilhões, dois terços aplicados na coleta e o restante no tratamento.

 

Os critérios regulatórios para os aportes no esgotamento sanitário, assim como no abastecimento de água, estão redefinidos no novo marco legal do saneamento básico (Lei 14.026), sancionado e regulamentado em 2020. A meta fixada na legislação, que visa estimular investimentos privados no setor, é ter os serviços de água e esgoto universalizados no País até o fim de 2033.

 

PROBLEMA SANITÁRIO

 

Da Política Nacional de Recursos Hídricos ao novo marco do saneamento, passando por diversas normativas federais, estaduais e municipais, não falta ao Brasil legislação em defesa da água. “O País tem um arcabouço de leis ambientais de vanguarda e detém conhecimentos científicos e tecnológicos de excelência na área. Contudo, as iniciativas, principalmente no setor público, ainda são tímidas diante dos cenários e desafios”, diz o Doutor em Ecologia Genebaldo Freire.

 

Autor de vários livros sobre o tema, ele acrescenta: “o maior desafio do Brasil é o mesmo de qualquer nação: ser melhor do que tem sido.” A avaliação de que as medidas adotadas pelo País ainda estão aquém da problemática dos recursos hídricos é compartilhada pelo Presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado, Jaques Wagner (PT-BA). Ele lembra que, para a proteção da água, o Brasil tem vários compromissos no acordo dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, incluídos desde o manejo sustentável à universalização do saneamento.

 

Outro comprometimento do Estado brasileiro, firmado no Acordo de Paris, em 2015, é o reflorestamento de 13 milhões de hectares até 2030, com o consequente benefício para a conservação de mananciais. “O problema da água passa por diversas estratégias, como a recuperação e tratamento das nascentes, o que significa adotar o reflorestamento. Em relação ao lixo, continua sendo jogado nos rios e oceanos, pois os aterros sanitários são insuficientes. O atual modelo de consumo não serve para a sustentabilidade nem o de produção, uso e ocupação do solo, atrelado ao desmatamento em larga escala, estimulado pelo Governo. Precisamos também olhar para nossos biomas.

 

No Cerrado, com as principais bacias hidrográficas do País, o que vemos desde a crise de 2014 é a destruição”, afirma Jaques Wagner. O Presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado salienta que, apesar da riqueza hídrica do País, cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada, vivendo em situação de vulnerabilidade sanitária.

 

“Isso agrava o drama da saúde e do desenvolvimento socioeconômico da nossa gente. Antes da pandemia de Covid-19, tínhamos regiões gravemente afetadas pela escassez hídrica, como o semiárido nordestino; agora, os problemas sistêmicos de captação, distribuição e tratamento parecem maiores, já que a higienização constante é necessidade fundamental”, lamenta o político.

 

BUSCA DE EFICIÊNCIA

 

A conservação dos recursos hídricos prevê, no contexto dos ODS, que o Brasil e demais países signatários da Agenda 2030 devem assegurar a disponibilidade e a gestão sustentável da água e o saneamento para todas as pessoas. As metas associadas aos objetivos buscam melhorar o aproveitamento desse bem natural, com captação e abastecimento capazes de superar os riscos de escassez. Para o monitoramento de uma das metas, um indicador é o de eficiência do uso, mensurado pela relação entre o Valor Adicionado e a demanda hídrica de cada setor econômico – equação que põe em evidência a importância da tecnologia.

 

No Brasil, apesar da evolução da eficiência no uso dos recursos hídricos, o indicador mostra que ainda há muito a fazer, principalmente na agropecuária e no abastecimento, de acordo com estudo dos pesquisadores Jaqueline Coelho Visentin e Leonardo Szigethy para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Eles apuraram, com base em dados da ANA de 2019 e do IBGE, que o índice de eficiência no País foi de R$ 76,40/m³ em 2015, com aumento de 2% sobre os R$ 74,70/m³ de 2010. A agropecuária se manteve em R$ 2,10/ m³, os serviços melhoraram em 11,7% (R$ 222/m³) e a indústria recuou 22,1% (R$ 93,80/m³). A eficiência é mais desafiadora na atividade agrícola e no abastecimento, principais demandadores de água, destaca Jaqueline Coelho Visentin,

 

Doutora em Economia e consultora em Contas Ambientais. “Com base em dados divulgados pela ANA, verifica-se a agropecuária, mais especificamente a irrigação, apresenta os maiores desafios, pois, até 2040, o crescimento previsto da área irrigada é de 76% e o da demanda hídrica, de 66%. O setor de serviços, que engloba o saneamento, também encara um desafio, pelos altos índices de perda na distribuição”, afirma a pesquisadora.

 

O Índice de Perda na Distribuição (IPD) no Brasil, assinala ela, foi de 39,2% em 2019, correspondente a um terço da água distribuída. Em face das mudanças climáticas, Jaqueline Visentin alerta que os desafios são ainda maiores, devido ao aumento das incertezas associadas à disponibilidade hídrica, alterações nos regimes de chuvas, eventos extremos e outros efeitos. Nesse cenário, ela afirma que “redobra-se a importância da tecnologia para a melhoria da eficiência no uso de água. Porém, a tecnologia não dispensa medidas complementares em direção à utilização sustentável dos recursos hídricos.”