Risco ambiental cresce e se expande para áreas costeiras
O estudo Adapta Brasil integra um amplo diagnóstico sobre os riscos mais severos e a capacidade de resposta das cidades e da infraestrutura do País às intempéries do clima. Por: Cezar Faccioli
O Brasil deve dedicar particular atenção ao impacto das mudanças globais nos oceanos. Não só porque seis em cada dez habitantes vivem a uma distância de até 200 quilômetros do litoral, mas também por dispor de uma costa de mais de oito mil quilômetros de extensão e ter muitas capitais em costas litorâneas. Imóveis, portos e ferrovias estão entre os ativos em risco com os eventos climáticos extremos. Mesmo em cenários controlados, as mudanças decorrentes dos abusos contra a natureza já criam enormes desafios regulatórios e de gestão urbana.
A acentuação dos extremos climáticos muda a equação do risco, com consequências devastadoras, inclusive em áreas nobres, com propriedades sob risco de subitamente perderem valor, ameaçando até a possibilidade de que sejam hipotecadas ou submetidas à proteção dos seguros.
Os alertas de risco se multiplicam. O Painel Global de Mudanças Climáticas (IPCC) lista oito cidades brasileiras com risco de submersão até 2.100, caso o aquecimento global não seja detido, e as marés subam um metro em média ao longo deste século. A lista inclui três capitais (Porto Alegre, Belém e Fortaleza) e cidades com mais de cem mil habitantes, como Cabo Frio/RJ, Santos/SP, Ilha de Marajó/PA, Oiapoque/AP e Pelotas/RS.
Megacidades costeiras, como Dhaka, Los Angeles, Mumbai, Lagos e Xangai, estão ameaçadas pelo oceano inchado. A elevação dos mares aumentará a frequência de inundações. “Se as temperaturas globais aumentarem 2,5 graus, essa frequência poderá aumentar de uma vez a cada 100 anos para uma vez a cada cinco anos até o final deste século”, afirmou Antonio Gutierrez, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU).
O climatologista Carlos Nobre, pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), divide a mesma opinião. “A previsão nas conferências do clima era a de que a temperatura do planeta subiria 1,5ºC entre 2030 e 2040. Esse aumento veio agora, em 2023 e 2024, trazendo os extremos que se temia de enchentes e secas”, enfatiza.
O ponto de partida é dramático. Nos últimos 39 anos, de acordo com o MapBiomas, o Brasil perdeu um terço de suas áreas naturais — o Cerrado perdeu 27%, e o Pantanal viu sua superfície coberta de água sair de 21% para 4%. O Observatório do Clima alerta para a necessidade de o Brasil zerar emissões de carbono até 2035, o que exige o cumprimento estrito da meta de desmatamento zero.
O Brasil tem duas mil cidades sob risco geohidrológico, de acordo com o diagnóstico do Cemaden. O primeiro estudo foi feito em 2018, com base em 828 cidades, na qual viviam 92 milhões de pessoas. Neste ano, o estudo está sendo ampliado para dois mil municípios.
O Adapta Brasil, coordenado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), integra um diagnóstico mais amplo sobre os maiores riscos e a capacidade de resposta das cidades e da infraestrutura do País. O levantamento abrange a evolução provável dos principais fatores para a sustentabilidade econômica, social e ambiental, a curto (2030) e médio (2050) prazos, com mapas interativos atualizados constantemente.
RECURSOS HÍDRICOS
O território brasileiro abriga 14% da água doce do planeta, mas, mesmo com essa fartura, a disponibilidade efetiva está sujeita a variações intensas por região e época do ano. O País é vulnerável às mudanças climáticas atuais e, mais ainda, às previstas para o futuro próximo, caso mantido o ritmo atual de devastação ambiental no planeta. As áreas mais ameaçadas pelo aumento na frequência e na intensidade de dias secos consecutivos compreendem o Leste da Amazônia e o Nordeste.
O clima predominante no Nordeste pode passar de semiárido para árido. Significa dizer que grande parte das cidades com mais de cinco mil habitantes enfrentará crise no abastecimento de água para consumo humano. Na Amazônia, a previsão é que o estresse hídrico nas estações secas tenda a aumentar ao longo deste século, o que indica um ambiente mais propício à elevação da temperatura média e à propagação de incêndios. Aliás, o clima seco favoreceu o recorde de queimadas registrado neste ano, mesmo com o reforço da fiscalização.
Os estudos compilados para o Adapta Brasil indicam tendência à diminuição das vazões dos rios em praticamente todas as bacias hidrográficas brasileiras até 2040, tomando-se 2011 como base inicial de comparação. A redução das vazões médias aplica-se inclusive às áreas em que se registra aumento da precipitação, por efeito contrário das perdas por evapotranspiração causadas pelo aumento da temperatura.
Um dos maiores exportadores de alimentos do planeta, com enorme disponibilidade de terras cultiváveis e cobertura solar na maior parte do ano na maioria de seu território, o Brasil não está livre do risco de impactos significativos das mudanças climáticas sobre a segurança alimentar. As transformações no regime de chuvas causarão perdas de produtividade em diferentes culturas. “Com a redução da corrente marinha, a América do Norte fica mais seca, e a do Sul, mais chuvosa”, alerta Emílio Lebre La Rovere, da Coppe/UFRJ.
A perda de 60% da safra de arroz no Rio Grande do Sul é um exemplo dramático associado a chuvas de grandes proporções, mas as ofertas de soja e milho, para citar duas commodities de grande relevância para a balança comercial e a produção animal, já vinham sendo castigadas pela forte oscilação da temperatura e dos regimes de chuvas.
PORTOS & RODOVIAS
O capítulo do Adapta Brasil dedicado aos portos baseia-se no Brasil de 2040. O quadro é especialmente crítico no sul e no norte do País, em que os extremos climáticos, como as secas, variações bruscas de marés, tempestades e furacões se apresentam mais frequentes.
Responsáveis pela movimentação de 14% do Produto Interno Bruto (PIB) e 95% do comércio exterior brasileiro, os portos demandam investimentos pesados para a adaptação ao novo quadro climático. Um desafio adicional é a elevada concentração da carga nos portos do Sudeste, com exceção de Itaqui, no Maranhão, que serve à exportação de minério, e de Paranaguá, no Paraná.
Responsáveis pela maior circulação de cargas no Brasil, mais de dois terços dos volumes transportados anualmente, as rodovias têm 79.634 quilômetros na malha federal, 87% delas pavimentadas. Análise da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), que congrega as principais operadoras do País, aponta nada menos que 92% dos entrevistados temendo as mudanças climáticas como o principal desafio para a atividade, antes mesmo da ocorrência das enchentes no Rio Grande do Sul.
O AdaptaVias, estudo do Ministério dos Transportes, buscou calcular os Índices de Risco Climático, para prazos curtos (2026 a 2045) e médios (2046 a 2065). No caso das enchentes e inundações, o primeiro tipo de ameaça estudado, partiu-se da comparação com o período de 1981 a 2000, em que os incidentes ficaram limitados a estradas do Pará e do Nordeste.
Os incêndios e as queimadas, na hipótese de emissões elevadas de gases do efeito estufa, apresentam a evolução mais preocupante entre as ameaças listadas. Nada menos que metade das rodovias brasileiras passaria a apresentar riscos médios de ser atingida por incidentes desse tipo, contra 31,9% no período-base. De 1981 a 2000, o risco elevado atingia o Piauí, o Tocantins e o Pará. No cenário projetado, a situação apresentaria sinais de deterioração, com o risco médio em crescimento.
As altas temperaturas representam um cenário de risco médio para a maioria das rodovias (63,2%). O fator decisivo para isso é o nível elevado de ameaça climática em 60% dos trechos considerados. Por estado, o quadro é mais crítico no Pará e no Rio Grande do Sul, em que todos os trechos apresentam riscos médio ou alto. No Pará, a abundância de trechos rodoviários de nível alto e muito alto determina a vulnerabilidade às altas temperaturas, pelo desgaste que impõem aos pavimentos.
O controle das emissões pode determinar uma redução significativa da vulnerabilidade, com 50,3% de rodovias em risco médio, ante 65,3%, no intervalo 2026/2045. Num cenário de emissões intermediárias, o risco aumenta para 67,4% no médio prazo (2046/2065), graças a um ritmo mais lento de aumento das temperaturas.
FERROVIAS
O transporte sobre trilhos é outra fonte de preocupação. O Ministério dos Transportes realizou um estudo inédito que analisou mais de cem mil quilômetros de rodovias e ferrovias federais brasileiras — o AdaptaVias estudou as ferrovias, com parâmetros semelhantes aos aplicados às rodovias, ressalvadas as diferenças de cada estrutura.
Inédito no País, o estudo projeta os riscos climáticos até o ano de 2065, considerando dois cenários distintos: um de emissões intermediárias e outro, de altas. Cada cenário abrange períodos de curto (de 2026 a 2045) e médio prazos (de 2046 a 2065).
O estudo destaca as ferrovias com alto tráfego (especialmente aquelas associadas às cargas de minerais) e áreas vulneráveis, como regiões com alta carga de transporte e suscetíveis a deslizamentos, como a Serra do Mar. A ameaça climática dos deslizamentos é alta apenas em trechos das ferrovias litorâneas de São Paulo.
Sobre impactos de erosão, observa-se uma concentração de trechos com altos níveis de risco de impacto em regiões específicas, correspondentes a alguns dos trechos mais estratégicos para o comércio exterior brasileiro.
A ameaça climática de erosão apresentou nível baixo em quase a totalidade do País (98,2%). Contudo, nas projeções, aproximadamente 60% da malha ferroviária apresenta níveis médios de ameaça climática.
O AdaptaVias aponta elevado nível de ameaça climática nas ferrovias gaúchas, especificamente entre Uruguaiana e Santa Maria (Estrada de Ferro Porto Alegre-Uruguaiana). Por conta disso, a região está entre aquelas com os maiores índices de risco climático em relação aos impactos diretos das altas temperaturas. Em todos os casos, há propostas para mitigar os riscos causados pelas mudanças climáticas.
Mudanças ganharam força a partir da tragédia no Rio
Em 17 de novembro de 2023, a universitária Ana Clara Benevides Machado, de 23 anos, morreu horas antes do show da cantora Taylor Swift, no Estádio Nilton Santos, o Engenhão. Os termômetros ultrapassavam os 40 graus quando a moça desmaiou. O laudo do Instituto Médico Legal apontou uma exaustão térmica que provocou um choque cardiovascular e comprometimento grave dos pulmões. O caso levou a Prefeitura do Rio a criar o protocolo para ondas de calor e impactou as finanças da T4F, produtora responsável pela organização do show.
Além da família da jovem, que decidiu processar a empresa, mais de 30 clientes protocolaram ações contra a T4F, pedindo indenizações com valores entre R$ 6 mil e R$ 50 mil. Um deles alegou ser diabético e acusou a promotora do evento de proibi-lo de tomar água no estádio, o que colocou sua vida em sério risco. Na semana seguinte ao show, a empresa acumulou uma perda de 15% no valor de suas ações negociadas na Bovespa.
Temperaturas extremas provocam a dilatação de vasos sanguíneos e artérias, o que pode levar à queda de pressão. Se isso acontece com frequência, a irrigação sanguínea dos órgãos fica insuficiente, e o organismo ativa uma série de mecanismos para compensar a temperatura corporal. Em consequência, a pessoa tende a suar mais, perder líquidos e sais minerais — e há risco de colapso cardíaco.
O cardiologista Luiz Roberto Londres, presidente do Instituto de Medicina e Cidadania (IMC), observa que as pessoas precisam estar alertas ao calor extremo e tomar medidas de proteção. São ações simples, que podem evitar riscos para a saúde.
“É importante evitar se expor ao sol ou fazer exercícios ao ar livre, em especial nos horários mais quentes. Beber bastante água e usar roupas leves também são fundamentais e, se possível, ficar em ambientes refrigerados. Crianças, idosos e animais domésticos precisam de atenção redobrada”, diz ele.