Saída precoce de jovens dos planos ameaça sustentabilidade

Saída precoce de jovens dos planos ameaça sustentabilidade

Estudo da FenaSaúde mostra que fatores conjunturais, como o nível de emprego formal menor entre os mais novos, afetam o pacto intergeracional previsto para as próximos anos.

Por: Vagner Ricardo

Em virtude da insuficiência de renda, parte dos segurados mais jovens começa a desistir dos planos de saúde, antecipando, aos poucos, fissuras no pacto intergeracional previstas para as próximas décadas, dada a transição etária em curso no País. Ou seja, há uma base decrescente de clientes jovens e de idosos em expansão nas carteiras de saúde das operadoras.

 

Não é uma boa notícia. “A Saúde Suplementar tem como pilar o mutualismo e o pacto intergeracional: jovens custeiam parte da utilização do sistema pelos idosos. Portanto, a sustentabilidade desse sistema é ameaçada quanto menor for o número de jovens contribuindo para o mútuo”, diz trecho do estudo da FenaSaúde “Considerações sobre o envelhecimento e os planos de saúde no Brasil”.

 

Letícia de Souza Grecchi, de 29 anos, guarda municipal de Niterói — cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro — faz parte do time que abriu mão do plano, após permanecer dez anos sob o manto da proteção da Saúde Suplementar.

 

Antes da desistência, ela ainda apostou em seguidas trocas de planos nos últimos anos, optando por coberturas cada vez mais básicas, coparticipação e rede de atendimento restrita para barateá-los. Não foi, porém, suficiente para acomodar seu custo no orçamento.

 

“Como também pago um plano individual para minha filha de 2 anos, precisei dispensar o meu. Claro que ficar sem plano privado me deixa muito preocupada. É uma situação angustiante estar à mercê da rede pública, mas a minha renda não é mais suficiente para custear dois planos ao mesmo tempo”, explica ela, que deixou em março a condição de segurada de saúde.

 

O caso de Letícia Grecchi é semelhante aos de outras jovens, como a pesquisadora bolsista M.S., que também cancelou seu plano cuja mensalidade equivalia a 30% de seu auxílio financeiro.

 

O estudo da FenaSaúde reconhece que fatores conjunturais, como o quadro macroeconômico e o nível de emprego formal — em geral, menor entre os jovens, segundo dados do IBGE — afetam o pacto intergeracional. “Não há uma medida única que seja suficiente para garantir a sustentabilidade do sistema, visto que, além dos fatores estruturais, há os conjunturais que influenciam esse equilíbrio, como o cenário macroeconômico do País e o nível de emprego formal”, descreve o estudo.

 

Por ora, as saídas dos mais jovens ocorrem de forma discreta e pouco perceptível, já que persiste o viés de alta do número de beneficiários — mais de 51 milhões em abril, um recorde. O motor disso são os planos empresariais, usados como um dos mecanismos de retenção de mão de obra.

 

Ainda assim, a queda de adesões dos jovens é recorrente. Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) dão conta de que o número de beneficiários de 20 a 39 anos recuou 7,6% entre 2013 e 2023, enquanto o de maiores de 60 anos saltou 32,6% no período, índice muito superior à alta de 5,3% no total de clientes de convênios médicos. É a prévia de um movimento que ganhará tração nos próximos anos, dado o envelhecimento da população.

 

Estima-se que atualmente pessoas com 60 anos ou mais de idade representem 15,2% do total de beneficiários de planos e seguros de saúde privados no País, considerando o levantamento da ANS. Até 2023, em termos absolutos, eram 7,6 milhões de usuários, mais que o dobro do que havia em 2000: 3,5 milhões de idosos, ou seja, 11,4% do total naquele período.

 

O principal impacto da presença de mais idosos do que jovens nas carteiras seguradas são as despesas geradas pelas diferentes faixas etárias. Números de uma pesquisa da União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unida), representante das empresas de autogestão, referentes ao exercício de 2020, indicam que a despesa assistencial anual per capita na faixa etária acima de 59 anos foi, em média, de R$ 10,1 mil. O valor é mais que o dobro da faixa etária imediatamente anterior, de 54 a 58 anos (R$ 5 mil anuais) e mais de sete vezes superior, na média, à faixa até 18 anos (R$ 1,4 mil).

 

Até 2031, destaca a FenaSaúde, utilizando projeções feitas do Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (IESS), o contingente de usuários de planos de saúde com 60 anos ou mais de idade deve aumentar 47,1%. Apenas esse fator isoladamente implicará alta de 20,5% nas despesas assistenciais das operadoras entre 2020 e 2031. Cuidados com idosos consumirão 45% do total das despesas assistenciais da Saúde Suplementar dentro de oito anos, ante os atuais 35%, cita o paper da FenaSaúde.

 

O documento lembra que, em 20 anos, o Brasil mais que dobrou sua população idosa. De 13 milhões de pessoas com 60 anos em 1998, para 34 milhões de idosos hoje. A França, por sua vez, levou 115 anos para dobrar seu contingente de idosos, e os Estados Unidos, quase 70 anos. Por volta de 2040, os idosos já serão mais numerosos do que jovens de até 19 anos no País. Até 2052, a população de brasileiros com mais de 60 anos vai dobrar de tamanho de novo. Serão 68 milhões.

 

“O aumento da proporção de idosos nos planos gera crescimento dos custos e desequilíbrio no sistema, já que os integrantes dessa faixa etária geram mais despesas assistenciais em relação às demais. Os idosos sofrem mais de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, que exigem acompanhamento médico constante, e de males que demandam exames mais sofisticados e custosos”, destaca a FenaSaúde.

 

PONTO DE EQUILÍBRIO

Superintendente executivo do IESS, José Cechin reconhece que mudanças na regulação da Saúde Suplementar serão necessárias para buscar o ponto de equilíbrio ou ao menos mitigar os riscos potenciais da transição etária. Ele diz que a atual debandada de jovens é um retrato prévio e ainda discreto do que ocorrerá em termos de fissuras no pacto intergeracional, já que a repercussão do envelhecimento da população terá um viés de contínua alta nos custos das operadoras nas próximas décadas.

 

Segundo ele, pode-se dizer que, de um avanço das despesas na ordem da 13% ao ano, 1,1 ponto percentual tem relação direta com a maior idade da população segurada. “Esse quadro, contudo, tende a evoluir significativamente e, nesse sentido, a saída precoce de jovens já identificada antecipa um pouco o problema que terá de ser enfrentado nos próximos anos”, diz ele.

 

Cechin lembra que as parcelas que desistem hoje dos planos são jovens saudáveis, já que aqueles que têm alguma comorbilidade não se arriscam a ficar sem plano. Na prática, isso acelera o chamado processo de seleção adversa de riscos: grupos específicos de indivíduos com características de risco superiores aos da população como um todo.

 

“Não há uma ‘bala de prata’ para um risco que, nos próximos anos, estará entre os mais proeminentes da sustentabilidade do sistema de saúde privado”, afirma José Cechin.

 

FAIXAS ETÁRIAS

Considerando-se a perspectiva de uma sociedade longeva, aumentar as faixas etárias, do ponto de vista atuarial, seria uma medida correta, opina José Cechin. Hoje são dez faixas etárias previstas na Resolução da ANS. A primeira vai de zero até 18 anos e a última, de 59 anos ou mais. O ideal é que houvesse novas faixas entre os idosos, que, no futuro, poderiam ir de 65 anos a 75 anos, por exemplo, considerando-se a perspectiva de crescente avanço da longevidade.

 

Entretanto, embora possa diluir os efeitos dos subsídios cruzados nas demais faixas etárias em favor dos segurados a partir dos 60 anos, há também o risco de reduzir a participação dos mais idosos, já que, nessa altura da vida, a maioria está fora do mercado de trabalho, depende de aposentadorias baixas — à exceção de uma parcela abastada do serviço público —, o que torna o peso das contribuições aos planos muito onerosa.

 

Para evitar que o envelhecimento se torne uma doença financeira crônica, as operadoras têm algumas armas. O receituário inclui programas de promoção e de prevenção da saúde, a fim de aumentar a qualidade de vida dos beneficiários e conter gastos com as complicações e o agravamento de doenças crônicas.

 

Outras ações envolvem aumento da eficiência, por meio de novas tecnologias, e uso mais racional do sistema, a partir do combate a fraudes, abusos e desperdícios que drenam os recursos escassos.

 

“O sistema precisa ser repensado e reorganizado para fazer frente à transição. A frequência de utilização vem crescendo ao longo dos anos e, se mantivermos tudo como está, não será possível garantir qualidade no atendimento à saúde”, assinala o levantamento da FenaSaúde.