SEGURADORAS EUROPEIAS TÊM  EXPOSIÇÃO AOS RISCOS DO SETOR DE PETRÓLEO LIMITADA

SEGURADORAS EUROPEIAS TÊM EXPOSIÇÃO AOS RISCOS DO SETOR DE PETRÓLEO LIMITADA

Preocupação da agência reguladora local é baseada na provável realocação de recursos em energias renováveis para frear o aquecimento global.

Por: César Faccioli

A agência reguladora de Seguros e Previdência da União Europeia, conhecida pela sigla em inglês Eiopa, planeja adotar limites mais rígidos para a exposição das seguradoras aos riscos da indústria petrolífera em toda a cadeia produtiva do setor. As normas afetam as companhias não apenas no quanto podem assumir de coberturas, mas também no quanto suas reservas técnicas podem ser compostas por ações e títulos das empresas de óleo bruto e gás natural.

 

A preocupação da agência é com o que considera um risco crescente das aplicações em combustíveis fósseis, tendo em vista uma provável realocação dos investimentos para energias renováveis. Os alertas recentes de que estaria comprometida a meta global de limitar a 1,5°C o aquecimento do planeta até 2050 alavancaram as pressões por uma rápida revisão da matriz energética, em particular nos países desenvolvidos.

 

A Agência Internacional de Energia (AIE) chega a sustentar que não há espaço para qualquer expansão do fornecimento de petróleo e gás no processo para limitar o aquecimento global a 1,5°C. Na verdade, para cumprir essa meta, a produção de petróleo e de gás deve diminuir 87% e 74%, respectivamente, nos próximos 30 anos.

 

Os chamados investidores institucionais, como seguradoras e fundos de pensão, ficam no centro desse debate, pelo peso que têm no financiamento dos projetos de longo prazo. A Eiopa encerrou em 22 de março o prazo para que os stakeholders (não apenas as companhias, mas acionistas, credores e clientes, todos os atores capazes de influenciar os destinos delas) se pronunciassem sobre os riscos ambientais em suas carteiras e o impacto potencial nas comunidades em que atuam, na solvência futura e na capacidade de honrar seus compromissos financeiros.

 

Companhias espanholas, alemãs, suíças, francesas e britânicas figuram nas maiores carteiras de seguros e resseguros de projetos petrolíferos no Brasil. O País tem planos de aumentar em 50% sua produção de combustíveis fósseis, sem com isso aumentar sua pegada de carbono. Conta para isso com uma participação acima de 80% de hidrelétricas na geração de eletricidade e o maior programa de biomassa do planeta, com praticamente meio século em operação, o Pró-Álcool.

 

Da tensão entre os dois vetores, uma regulação mais restrita no mercado europeu, benchmark do setor, e as vantagens competitivas brasileiras, resulta em um quadro desafiador. Presidente da Comissão de Grandes Riscos da Fenseg, Marcelo Gentil aposta na capacidade de a indústria brasileira de seguros adaptar-se a mudanças no quadro a médio prazo. “O que chama mais atenção, por ora, são a recuperação do poder de investimento da Petrobras e o potencial de aumento das carteiras de seguros, no rastro dessa retomada”, afirma.

 

IMPACTO NA SOLVÊNCIA

 

As medidas em discussão na agência reguladora europeia incluem, por exemplo, a obrigatoriedade de um aumento das reservas em contrapartida de investimentos nas empresas mais poluentes. O elevado impacto ambiental das atividades de exploração & produção, transporte, refino e distribuição de petróleo e derivados torna o setor particularmente vulnerável a essas medidas restritivas, em fase final de avaliação pela Eiopa. O temor dos reguladores é de um impacto na solvência de seguradoras e fundos de pensão por causa de uma rápida desvalorização dos ativos lastreados em combustíveis fósseis.
A preparação de normas mais rígidas para a garantia de aplicações e contratos de seguros, envolvendo o setor de petróleo e gás, reflete pressões sociais crescentes. A ponto de levar companhias de grande porte a se anteciparem à mudança nas regras e reduzirem sua exposição a combustíveis fósseis por iniciativa própria.

 

A campanha Insure Our Future, surgida na Austrália, enfrentou certo descrédito no começo, pela meta ambiciosa de convencer as seguradoras a priorizar investimentos em segmentos de menor impacto ambiental e reduzir a exposição a projetos de maior impacto no aquecimento global e nas mudanças climáticas. Assegurar o Futuro, tradução literal da campanha, envolveria abrir mão de ganhos polpudos no presente, daí a descrença inicial.

 

Uma década depois do lançamento, a iniciativa atraiu 40 grandes companhias, entre as quais, por exemplo, líderes do segmento de seguros na Alemanha, locomotiva da economia europeia e, não por acaso, sede do mais forte movimento ambiental do planeta. O Partido Verde integra a coalizão do primeiro-ministro Oskar Scholtz, social-democrata, e teve força suficiente, por exemplo, para levar o país a desativar boa parte de seu parque nuclear, mesmo que isso o tornasse mais vulnerável às flutuações na oferta de gás natural.

 

O Brasil — que já é o maior produtor de petróleo bruto da América Latina, superando o México — é um dos poucos países do mundo ainda em curso para expandir suas operações petrolíferas offshore anualmente pelos próximos cinco anos. A AIE admite que, sem intervenção política em contrário, o Brasil está no rumo para contribuir com 12-24% do aumento total da produção mundial de petróleo até 2026, em comparação com 2020. A expectativa é de que a produção brasileira passe de 3 milhões de barris por dia para 4,2 milhões.

 

CORO DOS DESCONTENTES

 

As metas brasileiras de expansão da oferta de óleo bruto e gás natural vêm sendo questionadas em foros ambientais internacionais, como a COP-27, no Egito. Empenhada em desestimular a oferta de seguros e o aporte de investidores institucionais, a Insure Our Future engrossa o coro dos descontentes, destacando os riscos potenciais da estratégia brasileira.

 

Para a ONG, uma das mais influentes do mundo, uma expansão do setor petrolífero offshore no Brasil não só agravará a crise climática, mas também devastará a costa quilombola, os povos indígenas, a pesca artesanal e as comunidades portuárias urbanas, que dependem do mar para sua própria sobrevivência, bem como espécies criticamente ameaçadas de extinção, como a tartaruga-de-couro e o tubarão branco.
Grande parte das reservas de petróleo offshore do Brasil está em ecossistemas sensíveis, incluindo o Grande Recife Amazônico, um dos maiores sistemas de recifes de coral do mundo e lar de peixes-boi, golfinhos, baleias e tartarugas marinhas ameaçados de extinção. Esses impactos potenciais ajudam a explicar a queda-de-braço no Governo em torno da exploração da Margem Equatorial, que se estende do litoral Norte da Amazônia (não apenas brasileira) até o Nordeste brasileiro. Abrir mão da oferta de energia fóssil, no curto prazo, é praticamente inviável para economias em desenvolvimento.
No Hemisfério Norte, onde se encontra a maioria do Primeiro Mundo, o desafio é distinto. Em diferentes graus, o dilema alemão, dos custos econômicos e político-sociais crescentes da opção ecológica radical, se repete em outras economias europeias, de acordo com o diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), Adriano Pires.

 

A pandemia da Covid-19, pela retração da oferta global, e a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, por impactar diretamente o abastecimento de gás natural para eletricidade e aquecimento, frearam o que Pires chama de ‘demonização dos combustíveis fósseis’. No mercado, e em particular nos governos dos países mais desenvolvidos, cresceu a preocupação com a segurança energética.

 

“E quem garante essa segurança são as fontes despacháveis, de manuseio mais imediato, como o petróleo, o carvão, a geração nuclear e, especialmente, o gás natural, a menos poluente entre as fontes fósseis,” argumenta.

 

ALIANHAMENTO DE NORMAS

 

Diretor do Clube de Engenharia e ex-secretário de Energia e Petróleo do Rio, Wagner Victer considera previsível o progressivo alinhamento das normas do mercado de seguros aos imperativos internacionais do combate ao aquecimento global. Pondera, entretanto, que há uma crescente consciência da impossibilidade de promover a transição energética interrompendo de forma brusca, a curto prazo, a produção de combustíveis fósseis.

 

A tendência de redução do risco da exposição das seguradoras a investimentos de alto impacto ambiental é legítima. Levará, contudo, a adaptações para viabilizar os projetos de energias não renováveis que se mostrem urgentes e necessários — tanto por opções como o autosseguro para as companhias mais capitalizadas, quanto pelo desenvolvimento de mecanismos novos pelas próprias seguradoras para a cobertura de riscos ambientais, operacionais e de projeto.

 

As exceções para os novos mecanismos ficam por conta de setores regulados internacionalmente de forma mais rígida, como o transporte de óleo bruto e combustíveis, mais sujeitos a sanções como a impossibilidade de ancorar em um porto de grande interesse econômico, em caso de descumprimento de metas. “Para as plataformas, as unidades de processamento de gás natural e os dutos, o autosseguro é plausível em caso de retração momentânea das seguradoras,” sustenta.

 

A maior parte das grandes seguradoras e das ‘major companies’ de petróleo incorporaram em suas missões e visões estratégicas compromissos com a redução do efeito estufa. Victer, contudo, pondera haver ainda distância entre intenção e gesto, entre as metas declaradas e a decisão efetiva. Cita como exemplos a interrupção de projetos de energia renovável e, em contrapartida, o investimento crescente de multinacionais americanas na Margem Equatorial de Essequibo, na Guiana.

 

O pano de fundo para essas contradições é o custo ainda muito elevado, comparativamente, da geração alternativa. Pesa, também, um aspecto técnico: a necessidade de garantir fornecimento contínuo de eletricidade, bem mais difícil para as usinas solares e eólicas.

 

A importância dos combustíveis fósseis para a confiabilidade da oferta contínua de energia, destacada pelas turbulências internacionais recentes e seus impactos nas cadeias globais de indústria, impôs estratégias mais gradualistas a players relevantes.

 

Um dos maiores gestores de carteiras de investidores institucionais do planeta, o Black Rock, reduziu a prioridade de investimentos a companhias certificadas em ESG (Ambiental, Social e de Governança, na sigla em inglês), lembra Adriano Pires.

 

A sigla reflete uma abordagem mais holística, que considere os stakeholders (partes afetadas, numa tradução livre) e não apenas os shareholders (acionistas). No caso da exploração de petróleo, o impacto sobre o modo de vida das populações tradicionais e o efeito sobre a oferta de pescado, pelas bombas sonoras que acionam os sonares, por exemplo, teriam que ser levados em conta para além dos relatórios de impacto ambiental, por exemplo.

 

O freio de arrumação na ênfase ambientalista promovido pelo Black Rock, mesmo num momento em que os eventos climáticos extremos se tornam mais frequentes e danosos, tem razão de ser e passa longe de ser um gesto isolado, para o diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura.

 

“Cada vez mais fica nítido que se a oferta de combustíveis fósseis for cortada bruscamente, o preço da energia sobe, com enorme impacto na economia em geral e nos custos,” explica.

 

SUBSÍDIOS NA EUROPA

 

A mesma Europa das pressões ambientais é o continente onde força e luz são cada dia mais caras, obrigando os governos a enormes subsídios para evitar um colapso social. “Esse desembolso com subsídios dificulta a aplicação em atividades de maior retorno e o crescimento econômico,” argumenta.

 

Principal fronteira de exploração offshore de óleo e gás natural do planeta, graças ao Pré-Sal, num momento de conflitos geopolíticos sem solução à vista em alguns dos principais pontos de produção terrestre, o Brasil deve ficar a salvo de maiores pressões para limitar a expansão da oferta de combustíveis fósseis.

 

“A contribuição brasileira para a redução do efeito estufa pela proteção da camada de ozônio está garantida, em larga medida, pela matriz elétrica (mais de 85% hídrica) de baixa emissão de gás carbônico,” sustenta Pires.

 

O especialista chega a apostar num ritmo mais gradual de endurecimento das normas de exposição de seguradoras aos riscos da indústria de combustíveis fósseis. Segundo Pires, ‘a demonização do petróleo’ perdeu força, e hoje o mundo está vendo a necessidade de considerar um tripé: sustentabilidade ambiental, segurança energética e custos acessíveis para a maioria da população.

 

“O planeta está cada vez mais eletrificado, a energia elétrica tornou-se um bem essencial. Para se ter qualidade de vida, eletricidade, água tratada e esgoto, serviços que dependem da energia, são tão essenciais quanto o alimento”, conclui.