“TEMPESTADE PERFEITA” COLOCA OS PLANOS DE SAÚDE EM RISCO

“TEMPESTADE PERFEITA” COLOCA OS PLANOS DE SAÚDE EM RISCO

Reajustes abaixo da alta de custos, tratamentos caros, aumento de utilização, fraudes e insegurança jurídica explicam crise do segmento e ameaçam o atendimento a 50 milhões de usuários.

Por: Mário Moreira

O setor de planos de saúde vive uma “tempestade perfeita”, como define a diretora-executiva da FenaSaúde, Vera Valente. Reajustes de mensalidades que não cobrem a variação dos custos, gerando sucessivos déficits operacionais; exames e procedimentos cada vez mais caros, com tratamentos que custam mais de R$ 7 milhões por paciente; aumento da frequência de utilização; insegurança jurídica; escalada das fraudes e judicialização crescente são os ingredientes da crise. Esse conjunto de fatores põe em risco a Saúde Suplementar e o atendimento a mais de 50 milhões de beneficiários de planos médico-hospitalares, ameaçando ainda sobrecarregar o já abarrotado Sistema Único de Saúde (SUS).

 

Em 2022, as operadoras de planos médico-hospitalares tiveram déficit operacional de R$ 10,7 bilhões, pior resultado em 25 anos. As receitas decresceram 2,8%, mas as despesas subiram 0,1%. Em setembro, a sinistralidade atingiu o recorde de 93,2%. Com o controle da pandemia da Covid-19, os planos autorizaram 1,8 bilhão de procedimentos, 10,6% a mais que em 2021. A alta das internações foi de 13,5%, e a de consultas, 12,7%. 

 

Para Vera Valente, os dados revelam um novo padrão de uso do sistema. Segundo ela, foi o primeiro momento em que o setor superou os números anteriores à pandemia em determinados procedimentos. Das 264,7 milhões de consultas em 2022, 60 milhões foram em pronto-socorro, 34,7% a mais que em 2021 e 4,3% a mais que em 2019, último ano pré-pandêmico. Na crise da Covid-19, as operadoras ligadas à FenaSaúde autorizaram 585 mil internações e oito milhões de exames sorológicos ou de PCR, ao custo de R$ 30,4 bilhões.

 

O quadro de dificuldade permanece inalterado neste ano. No primeiro semestre de 2023, as operadoras de planos médico-hospitalares tiveram déficit operacional de R$ 4,3 bilhões.

 

Os índices de reajuste dos planos individuais, definidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), são um dos principais alvos de crítica das operadoras, por não compensar a alta dos custos. Além disso, duas leis promulgadas em 2022 afetaram fortemente o setor. Em março, a Lei 14.307 acelerou o processo de incorporação ao Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, cuja atualização passou de bienal a contínua. Em setembro, a Lei 14.454 retirou o caráter taxativo do Rol – tratamentos, terapias e medicamentos da lista passaram a ser considerados apenas exemplos do que as operadoras têm de oferecer. Para piorar, em agosto, a ANS extinguiu o limite a sessões com psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e fisioterapeutas.

 

“A forma de reajuste dos planos individuais não considera parâmetros importantes como a sinistralidade das carteiras, a diferença entre modalidades de negócios, a regionalização de produtos, o fim da limitação de terapias e a velocidade da incorporação de procedimentos e medicamentos na lista de coberturas obrigatórias. O índice fica descolado do avanço real de custos”, afirma Vera. 

 

Ela ressalta que o índice médio nos três últimos reajustes – incluindo o atual, de 9,63% – ficou em 5,64%, ante um IPCA médio de 6,79%. “Os planos individuais respondem por 18% dos beneficiários de assistência médica, ou nove milhões de usuários. A oferta poderia aumentar com a revisão da atual fórmula de reajuste”, informa.

 

Entre os fatores que ameaçam a Saúde Suplementar, o presidente da CNseg, Dyogo Oliveira, destaca o envelhecimento populacional, que eleva o número de procedimentos; a atualização tecnológica, que encarece os custos; a ampliação das coberturas e as fraudes. Cada beneficiário, diz ele, precisa se conscientizar de que o plano só pode ser usado quando realmente for necessário. 

 

“Às vezes, a pessoa vai a um médico, e ele pede uma lista de exames. Vai a outro, e ele pede mais exames, muitos iguais. O paciente tem de informá-lo sobre isso. Existe também quem empreste a carteirinha, e há clínicas que oferecem tratamentos estéticos e os caracterizam como exames ou consultas. O beneficiário precisa entender que tudo isso é fraude”, detalha. 

 

“Os planos individuais respondem por 18% dos beneficiários de assistência médica, ou nove milhões de usuários. A oferta poderia aumentar com a revisão da atual fórmula
de reajuste.”    

Vera Valente, FenaSaúde

 

 

VARIAÇÃO DOS CUSTOS

 

O diretor-presidente da ANS, Paulo Rebello, afirma que o índice de reajuste dos planos individuais se baseia na variação dos custos assistenciais, informados pelas próprias operadoras. Ele considera inadequado comparar o reajuste dos planos à inflação. “Índices como o IPCA medem a variação de preços de produtos e serviços. Já os índices de reajuste de planos de saúde são de custos, pois medem a variação combinada de preços e de quantidades consumidas.” 

 

Rebello explica que o percentual calculado pela ANS considera aspectos como as mudanças nos preços dos produtos e serviços em saúde, bem como as mudanças na frequência de utilização, e ressalta que os custos do setor sempre subiram acima do IPCA, o que se reflete nos reajustes. “O recorte dos últimos três anos foi uma exceção, pela brutal redução no uso de serviços, devido à pandemia.”

 

Segundo o executivo, o resultado do setor de planos médico-hospitalares foi positivo em três dos últimos cinco anos. Lembra ainda que, apesar do prejuízo operacional, a Saúde Suplementar (operadoras médico-hospitalares, operadoras exclusivamente odontológicas e administradoras de benefícios) teve, no segundo trimestre de 2023, resultado líquido de R$ 1,1 bilhão, sendo R$ 837,2 milhões de planos médico-hospitalares.

 

Rebello afirma ainda que o fim do limite do número de terapias levou em conta a importância de promover a igualdade de direitos e o acesso aos tratamentos a todos os usuários. Sobre o Rol de Procedimentos, ele diz:

 

“A cada dia surgem tecnologias que proporcionam melhor resultado para os pacientes, motivo pelo qual o processo de revisão do Rol é dinâmico e tem sido aprimorado sistematicamente.”    

Paulo Rebello, ANS

 

“A cada dia surgem tecnologias que proporcionam melhor resultado para os pacientes, motivo pelo qual o processo de revisão do Rol é dinâmico e tem sido aprimorado sistematicamente”. Muitas das inclusões feitas na lista, afirma ele, reduzem custos, pois aceleram a recuperação, diminuem o tempo de tratamento e agilizam os diagnósticos.

 

MARCO LEGAL

 

Apesar dos problemas, a Saúde Suplementar continua crescendo. Em julho deste ano, havia 50,7 milhões de usuários de planos médico-hospitalares, 1,9% a mais do que no mesmo mês de 2022. No caso dos exclusivamente odontológicos, eram 31,5 milhões de clientes, alta de 7,5%. O setor emprega cinco (4,8) milhões de pessoas e representa cerca de 3% do PIB, respondendo por 83% da receita dos hospitais privados e mais de 61% da receita dos laboratórios de medicina diagnóstica.

 

Vera Valente defende um novo marco legal para o setor, por considerar que a Lei dos Planos de Saúde, de 1998, está defasada. “As regras que regem a Saúde Suplementar completaram 25 anos e, no seu cerne, pouco mudaram. A legislação precisa adequar-se a um mercado cada vez mais baseado em relações informais de trabalho, com renda média mais baixa, o que impacta diretamente a capacidade de contratação de serviços de saúde.”

 

Segundo ela, seria preciso permitir a oferta de planos com diferentes coberturas. A executiva defende a permissão da venda de planos exclusivos para consultas e exames, mais aderentes às necessidades e à capacidade de pagamento das famílias e das empresas que não conseguem fazer frente a serviços mais abrangentes. 

 

Ela entende que essa nova categoria de planos tende a ser mais acessível. “A cobertura de urgências e emergências, assim como a de exames e terapias complexas, deve passar a ser vinculada exclusivamente a produtos hospitalares.” Os planos ambulatoriais continuariam sendo obrigatoriamente oferecidos, bem como aqueles com cobertura completa. 

 

Para Dyogo Oliveira, esse novo modelo seria fundamental para garantir a sustentabilidade do sistema, pois atrairia novos beneficiários, permitindo que os custos fossem distribuídos por mais pessoas e barateando os preços para todos: clientes, operadoras e prestadores de serviços. 

 

“As soluções vão surgir. Vamos conseguir manter o sistema prestando serviços de qualidade e funcionando inclusive como auxílio ao próprio Estado. A população que tem plano de saúde alivia a pressão sobre o SUS. Quanto maior o sistema da Saúde Suplementar, melhor o atendimento do SUS, porque tira pessoas do sistema público.”

 

O presidente da CNseg acredita que a experiência internacional pode nortear o debate. “Na Europa, onde a saúde pública é boa, a pessoa tem acesso a todos os procedimentos, mas com valor máximo por beneficiário. Em alguns países, a cobertura é limitada. Mas há também o plano completo, com todas as coberturas, como aqui”, explica. 

 

Nesse sentido, afirma Dyogo, é importante a diversificação no Brasil. “Cada produto vai ser adequado a um tipo de perfil, de idade etc., o que vai assegurar o equilíbrio do sistema.” Segundo ele, é preciso garantir não só a continuidade da Saúde Suplementar, mas também sua ampliação. “Isso é que vai permitir uma redistribuição do custo geral, reduzindo o custo médio. É preciso preservar a saúde do sistema.” 

 

Vera Valente defende novos modelos de franquia e coparticipação, que, segundo ela, atuam como instrumentos de compartilhamento de risco, de modo a permitir a cobrança de mensalidades mais baixas, estimular o consumidor a ser mais responsável por suas escolhas, reduzir desperdícios e racionalizar o uso das redes assistenciais. 

 

Apesar das agruras atuais, há consenso de que a Saúde Suplementar pode experimentar forte avanço, acoplando pelo menos milhões de pessoas que hoje buscam alguma proteção no chamado segmento de cartões de descontos. Esses planos concedem descontos em empresas de prestação de serviços na área de saúde (consultas médicas e exames). Essa parcela de público permanece fora do mercado porque as amarras legais impedem a flexibilização das coberturas e, naturalmente, dos valores das contribuições em linha com as mais diferentes faixas de renda dos consumidores.

 

“Esses 40 milhões (que não têm plano) são o potencial de crescimento imediato do segmento.
As amarras legais vetam produtos alternativos, e isso afasta essa parcela do público.”    

Dyogo Oliveira, CNseg