Transição energética envolve novos desafios para o Brasil

Transição energética envolve novos desafios para o Brasil

Em 2023, foram investidos US$ 34,8 bi em descarbonização no País, que tem cerca de 50% da matriz de energia limpa. Para especialistas, é preciso ampliar e diversificar o uso de fontes renováveis.

Por: Mário Moreira

As recentes inundações no Rio Grande do Sul e as frequentes ondas de calor por todo o País recolocaram na ordem do dia a necessidade de o Brasil acelerar seu processo de transição energética, que prevê a substituição de combustíveis fósseis – responsáveis pela emissão de carbono que causa as mudanças climáticas – por fontes de energia limpas e renováveis. Os eventos extremos indicam que 2024 poderá ser ainda pior em termos climáticos do que foi 2023, ano mais quente já registrado no planeta.

 

A situação do Brasil na transição energética é comumente considerada melhor que no restante do mundo, em virtude do alto percentual de fontes limpas usadas na matriz de geração de energia. Apesar disso, especialistas ouvidos pela Revista de Seguros veem fragilidades na posição brasileira, defendem a ampliação e a diversificação das fontes renováveis e alertam: a transição energética é apenas uma fase, ainda que fundamental, de um processo mais amplo de descarbonização.

 

Embora o País seja o quinto maior emissor de gases de efeito estufa, por aqui as emissões resultam sobretudo do uso da terra e do desmatamento (50%) e da agropecuária (24%), diferente do que ocorre na média dos países do G20, em que 70% das emissões estão ligadas ao setor de energia. Além disso, mais de 80% da matriz elétrica nacional é composta de fontes renováveis, ante 29% na média das demais nações do bloco.

 

Na matriz energética como um todo, as características geográficas brasileiras – favoráveis ao uso de energia hidrelétrica, solar e eólica, por exemplo – permitem que 47,4% da oferta de energia venha de fontes renováveis, de acordo com o Balanço Energético Nacional de 2023. O valor é mais que o triplo da média mundial (15%).

 

Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA), os combustíveis fósseis respondiam em 2020 por 80% da matriz energética mundial. Na última Conferência de Mudanças Climáticas da ONU, a COP-28, realizada em dezembro nos Emirados Árabes, foi firmado um compromisso global com o início da transição energética. A meta é triplicar a participação das fontes renováveis nesta década.

 

Só no ano passado, o Brasil investiu US$ 34,8 bilhões em transição energética, segundo o relatório da Bloomberg NEF´s Energy Transition Investment Trends 2024. O valor abrange todas as iniciativas em energia renovável, captura de carbono, hidrogênio verde e veículos elétricos. De acordo com o documento, o País foi o sexto que mais investiu nessa área em 2023.

 

Outras iniciativas recentes indicam o compromisso do Brasil com o tema. Em setembro último, o Governo lançou o Plano Nacional de Transição Energética justa e inclusiva, visando reduzir o percentual de carbono na matriz de transportes. Na COP-28, o País aderiu à Aliança Global de Energia Eólica Offshore (em alto-mar). Em janeiro deste ano, o Ministério de Minas e Energia e a IEA assinaram o Plano de Trabalho Conjunto para a Aceleração da Transição Energética. No mesmo mês, foi lançado o programa Nova Indústria Brasil, com medidas de incentivo à transição no setor.

 

A Câmara dos Deputados aprovou em março deste ano a criação do Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten), de estímulo a projetos de desenvolvimento sustentável. A proposta, que ainda será votada pelo Senado, prevê duas opções de financiamentos: por meio de transações tributárias ou a partir de empréstimos privados garantidos pelo Fundo Verde, a ser gerido pelo BNDES, composto por créditos de empresas perante a União. Há outros projetos de lei em tramitação sobre o tema.

 

ALTERNATIVAS

A diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV (Ceri), Joisa Dutra, concorda que, na comparação com o exterior, o Brasil aparece bem em termos de transição energética, em qualquer parâmetro de comparação – seja com as demais nações dos Brics, do G20, da América Latina, seja entre os países que têm grandes florestas tropicais. Mas ela vê problemas do ponto de vista das emissões:

 

“Costuma-se dizer que o Brasil já usa energia renovável, mas o que o País emite de carbono, em termos percentuais, é quase o mesmo de sua participação no PIB mundial, cerca de 2,8%. Isso é bem ruim”, compara.

 

Para ela, é um dever de casa importante do Brasil fazer a transição energética, elevando a capacidade de geração de energia elétrica para atender o que considera um dos pilares da transição: a eletrificação da mobilidade e da indústria. Para isso, acrescenta ela, será preciso aumentar a capacidade de gerar energia elétrica usando fontes renováveis – hoje, a eletricidade representa cerca de 25% da matriz brasileira, e, para atender os novos usos, será preciso chegar a 70%.

 

“A questão é garantir que a eletricidade mantenha as propriedades de energia limpa, confiável e financeiramente sustentável. O Brasil vai bem em energia limpa, mas tem desafios de confiabilidade e problemas de financiamento”, diz ela, referindo-se à crise hídrica de 2021 e ao fato de a energia ser cara no País.

 

Segundo Joisa, existe um vasto conjunto de tecnologias para ampliar a eletricidade na matriz energética nacional, em especial as eólicas offshore e o hidrogênio verde ou de baixo carbono (extraído a partir de fontes limpas). “O hidrogênio de baixo carbono é muito mais badalado do que de fato tem viabilidade econômica, pois depende de vários fatores e há riscos muito grandes”, diz, citando a resistência do material para transporte em altas temperaturas e o deslocamento em longas distâncias. Ela lembra ainda das apostas em sequestro e armazenamento de carbono. “Mas são tecnologias ainda não economicamente viáveis.”

 

A diretora da FGV Ceri acredita que o País deve investir em todas essas possibilidades, mas lembra que a transição energética é só uma etapa da trajetória de descarbonização – no caso do Brasil, a meta é zerar as emissões líquidas até 2050. “O ambiente é de muita incerteza. Se as emissões de carbono no Brasil não são tão grandes do ponto de vista energético, temos desafios no uso do solo e precisamos encontrar na energia as soluções para seguir nessa jornada de desenvolvimento. O Governo precisa dar sinais mais articulados para que os agentes possam investir e garantir o aumento da competitividade do País.”

 

Emílio La Rovere, professor do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ, alerta: “O debate sobre descarbonização precisa levar em conta as dimensões sociais e ambientais, e não só a questão energética. Estamos muito mal em desigualdade, saneamento e desmatamento, que melhorou um pouco agora”, exemplifica.

 

Segundo ele, a transição energética no Brasil se beneficia da decisão política, adotada nos anos 1970, de o País investir em energia hidrelétrica, o que lhe conferiu a base para uma matriz menos dependente de combustíveis fósseis. O pesquisador, porém, aponta atraso na adoção das fontes solar e eólica, o que vem sendo corrigido nos últimos anos, em particular pela instalação de parques eólicos no Nordeste.

 

“A crise financeira global de 2008 fez com que os países mais avançados cortassem subsídios aos fabricantes de energia eólica e solar, e essas empresas acabaram vindo para cá”, explica. Ele vê grande futuro para essas duas fontes e lembra que, no caso das eólicas, a exploração em alto-mar ainda está na fase de projetos. Enxerga ainda potencial nos chamados biocombustíveis avançados, como querosene de aviação feito a partir da cana-de-açúcar.

 

La Rovere acredita que a biomassa de cana, já responsável por 15% da matriz brasileira (incluindo o etanol usado em automóveis), deva ser usada em maior escala. Inclusive como complemento à eletricidade, cujas fontes são intermitentes – a hidrelétrica está sujeita ao regime de chuvas, assim como a eólica depende dos ventos, e a solar, da luz natural. “Tem havido também uma ampliação muito importante do uso de álcool de milho nas usinas, aproveitando a safrinha do produto.”

 

PROJETOS DE LEI

No âmbito legislativo, o professor aposta no projeto que cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). O texto, aprovado em dezembro último na Câmara dos Deputados e dependente de nova apreciação pelo Senado, cria um limite de emissões por empresa: as mais poluidoras terão de compensar suas emissões com a compra de títulos, a serem vendidos pelas ambientalmente mais eficientes. “Com isso, você já atinge o grosso das emissões no País e dispõe de um mecanismo de mercado para garantir a eficiência econômica e energética”, avalia La Rovere.

 

Segundo ele, é um modelo inspirado no European Trading System, estabelecido em 2005 e principal responsável pela redução das emissões em 30% na Europa desde os anos 1990. “É bem mais poderoso que o Paten”, compara.

 

A relatora do Paten na Câmara, Marussa Boldrin (MDB-GO), argumenta que o programa vai melhorar a qualidade de vida a curto, médio e longo prazos e elevar a competitividade do País. “O Paten vem para modernizar a economia sustentável do Brasil. Vamos impulsionar a criação de fontes de energia renováveis e acelerar a transição daqueles que ainda têm fonte de energia poluidora para fontes renováveis. Na disputa de tecnologias, o Brasil não pode ficar para trás, precisamos investir em estudo e tecnologias novas. O mercado de crédito de carbono é uma realidade e precisamos preparar o Brasil.”

 

Em relação às críticas ao projeto, pelo fato de incluir investimentos em gás natural, de origem fóssil, entre os que poderão receber financiamento por meio dos mecanismos previstos no Paten, a deputada alega que, “de forma geral, o texto também valoriza a diversificação da matriz energética, incorporando diferentes fontes à lista de prioridades, desde que enquadradas entre renováveis ou de baixo carbono”.